Abstract Poético: Umbra


Abaixo, apresento meu poema Umbra, que serve como “abstract poético” a este ensaio. A dor sem testemunhas é uma dor específica, que precisa de “algum outro” para que possa se aquietar e mais: muitas vezes exige do “portador-solitário-da-visão” que erija uma linguagem, como contingência para dizer “o que ainda não pôde ouvir”.

Eis o poema:



Umbra


Há uma sombra feita de
silêncio.

Ela é quase
sólida.

Eu quase posso
apalpá-la.

Mas estou sozinha.

Se eu disser o que vejo,
haverá pergunta, haverá 
surpresa e, depois, 
silêncio.

Há uma parede de
silêncio feita de sombra
feita de umbra, entre mim
e os outros.

E ela se adensa, na
medida em que não é
vista.

Mas é bem isso que soa
incompreensível para
quase todo
mundo.

Devo inventar uma nova
língua, mas estou sozinha.

Há o primado do centro
sobre o perímetro,
e o centro é
solitário.

Há uma chave de ouro
presa com cadeado e
segredos vários num
cofre inviolável.

Mas não há a chave do
próprio cadeado.

E ninguém me entende:
não entende sequer minha
pergunta, quando me atrevo
a mencionar essa chave
segunda.

Ninguém pensou em perguntar
antes.

Essa é uma nova língua que eu
preciso inventar, mas estou só
ainda.

Há o primado de alguma ciência
mais recôndita mais interna sobre
as intermediárias,
mas tem de haver
um caminho-de-palavras
até ela, e não estão escritas.

Há o primado do silêncio
sobre a palavra
adivinhada.

Porque estou sozinha.

Eu sou a sentinela solitária
de minha própria visão
nublada, e não há
testemunhas.

Pois estou sozinha.

Eu fiz a pergunta primeira:
"o que se pode dizer a um
terceiro?! Ou devo
arrancar meus
olhos?!".

O primeiro e maior
dilema é a solidão do
olho.

Algo se moveu no meio
da floresta, mas eu estava
sozinha.

Um raio incendiou o galho de uma
árvore, mas só eu vi o fogo originário.

Um animal extinto
foi visto pela primeira
vez por mim, mas correu
fugindo.

Eu segurei o fóssil desconhecido
mas os ossos esfarelaram no caminho
como cinzas, porque estou sozinha,
e preciso inventar uma
nova língua.


********


Vamos trabalhar o poema por partes, amplificando-o, livremente.

Há uma sombra feita de
silêncio.

Ela é quase
sólida.

Eu quase posso
apalpá-la.

Mas estou sozinha.


O silêncio ambiental sobre algum assunto é uma “parede sólida” para uma criança, ou para a “criança que sobreviveu em nós”. Muitas vezes, essa parede é construída pela soma do que os ambientes primários da criança não podem dizer, não quiseram dizer, não souberam dizer, não puderam dizer. Sobretudo, daquelas coisas das quais “seus olhos [seus = “os dos ambientes!”] se desviaram”, num gesto que eu chamo de “desvio calculado do olhar”.

Barbáries de muitos tipos fazem parte desse rol de indizíveis. Vejamos: o rapaz que matou crianças numa escola em realengo alguns anos atrás, descrevia seu bullying na escola, tendo sua cabeça enfiada dentro da privada por vários garotos. É de se perguntar “como isso pôde passar incólume pelos olhos de professores e diretoria”, pelos olhos adultos, enfim. Parte de seu discurso em vídeos expostos pós-assassinato, mostram essa questão posta como “grito póstumo e deslocado no tempo” e, com isso, não estou em nada “justificando” o ato criminoso do rapaz. Estou apenas lendo-o nessa clave específica. O que não pôde ser visto e dito por outros, foi “gritado” insana e postumamente. Em todos os ambientes encontramos barbáries equivalentes: na família, nas igrejas, nas escolas, nos sonhos, nos medos “indizíveis, porque não há ambiente que os acolham”. Essa sombra é uma parede de silêncio. Esse silêncio é uma parede de sombra.

Se eu disser o que vejo,
haverá pergunta, haverá
surpresa e, depois,
silêncio.

Há uma parede de
silêncio feita de sombra
feita de umbra, entre mim
e os outros.

E ela se adensa, na
medida em que não é
vista.


Há, costumeiramente, espaço para se dizer o que se vê sozinho? Frequentemente, não. Quantas vezes, alguém ouviu diante de uma tentativa de explanação: “mas isso não é possível”. Nas lógicas institucionais que defendem a boa imagem dessas instituições “muita coisa não é possível de acontecer” e é expulsa [uma ação de negação ativa!] do discurso. “Tudo bem, aluno chamar outro de zarolho, quatro olhos baleia, isso conhecemos; mas garotos empurrarem a cabeça de outro dentro do vaso sanitário, isso não pode acontecer. Não ocorre. Não concebemos que possa ocorrer."

Se eu disser o que vejo,
haverá pergunta, haverá
surpresa e, depois,
silêncio.


“Seu pai com mais seis chutando a cabeça de um mendigo que dormia na rua? Isso jamais pode ter acontecido!” Faz-se o silêncio pós-surpresa. Também aquele medo que pede por acolhimento: “eu sonhei um sonho mal, acordei e ainda estou no clima do sonho. Por favor, me ajudem!” Isso é um medo em tom épico, simétrico à narrativa bíblica do sonho de Nabucodonosor. Não se espera de ninguém que possa adivinhar tal sonho, mas que possa ouvi-lo e acolhê-lo muito para além das desculpas ou esquivas. Porque há o silêncio que foge da questão e outro que acolhe a questão.

Vamos simplificar as coisas: a criança sonha que morreu, e acorda ainda com “o halo do sentimento de estar morta”, nada tão complicado assim. Um sentimento de “não estar cem por cento presente nem viva, como se parte do sentimento do sonho permanecesse com ela, como uma realidade residual”. Há ouvido para tal demanda, costumeiramente?  Se eu disser o que vejo ou sinto, haverá surpresa e, depois, silêncio.

Há uma parede de
silêncio feita de sombra
feita de umbra, entre mim
e os outros.

E ela se adensa, na
medida em que não é
vista.


Meu sentimento de “morte no sonho” se adensa, à medida mesma em que os outros se “desviam” ou “se distraem” dessa questão, evitando-a. Essa parede é feita de sombra entre eu e os outros, e aumenta a sombra em mim [meu sentimento de estar meio-vivo, no singelo exemplo dado] e no ambiente, me separando dos outros. E me deixando sozinho, sem testemunhas. Sim, exatamente: a parede se adensa justamente por não ser vista!

Mas é bem isso que soa
incompreensível para
quase todo
mundo.

Devo inventar uma nova
língua, mas estou sozinha.

Há o primado do centro
sobre o perímetro,
e o centro é
solitário.


Ninguém entende que o sentimento ou halo da morte que eu trouxe de meu pesadelo infantil aumenta por não poder ser tocado por ninguém. Ninguém entende que minha cabeça na privada, porque só sabida por quem a enfiou lá dentro [e não por quem não a causou!] mantém minha cabeça ali, por um tempo indefinido. Isso soa incompreensível para quase todo mundo. Devo inventar uma nova língua: “halo de morte subsistindo à vigília, pós-sonho” nunca foi dito por ninguém que eu conheça. Como conceber a “traduzibilidade” desse sentimento ou situação tão solitária? A instituição não reconhece demograficamente cabeças enfiadas nas privadas por coleguinhas de sala de aula. Isso não existe. Como dizia o robô da série “perdidos no espaço”: “não tem registro, não tem registro”.

Naturalmente que há o primado do centro sobre o perímetro [o senso de eu, o senso self, o senso de “eu mesmo”, o senso de eu-em-qualquer-lugar-que-seja], mas o centro se encontra mais e mais solitário. Ele se perde do ambiente ou o ambiente já o perdera de vista desde antes? E se esse senso de eu é o senso de quem tem um pai que ninguém mais vê [aquele que chutou a cabeça do mendigo dormindo na rua], nem ele mesmo diz que existe [nem o próprio pai!]? E se esse senso de eu ficou meio morto e foi rechaçado na angústia noturna ou no terror noturno sem qualquer amparo? E se esse senso de eu foi transformado em dejeto por aqueles que deveriam ser amigos, e os outros dizem que eles continuam sendo (amigos)? Pois bem: há o primado do centro sobre o perímetro, e o centro é solitário.

Há uma chave de ouro
presa com cadeado e
segredos vários num
cofre inviolável.

Mas não há a chave do
próprio cadeado.

E ninguém me entende:
não entende sequer minha
pergunta, quando me atrevo
a mencionar essa chave
segunda.

Ninguém pensou em perguntar
antes.

Essa é uma nova língua que eu
preciso inventar, mas estou só
ainda.


Não se abrem cadeados por decreto, mas por auscultação e impressão exata das ranhuras com cujo negativo se faz a chave que as preencha: que preencha as ranhuras. Assim como peritos em cofres auscultam a decifração de sua senha, enquanto giram o código no mecanismo de abertura, como nos filmes. Se não há quem ausculte ou imprima essas ranhuras da tira biográfica infantil [o pai chutando a cabeça de mendigos, minha cabeça empurrada para a privada, acordar assustado meio-morto com o halo-de-morte-do-próprio-sonho-ainda-presente], como entenderão que eu questione “a própria falta de impressão e auscultação”? Deverei estar louco! Eu falo de coisas secretas das quais ainda não se ouviu falar antes. Será que eu preciso inventar uma nova língua? E se por acaso eu o fizer, alguém falará esta mesma língua ou quererá escutá-la? Alguém quererá apre(e)ndê-la? Por enquanto, me vejo só, ainda. E ainda me vejo só.


Há o primado de alguma ciência
mais recôndita mais interna sobre
as intermediárias,
mas tem de haver
um caminho-de-palavras
até ela, e não estão escritas.

Há o primado do silêncio
sobre a palavra
adivinhada.

Porque estou sozinha.

Eu sou a sentinela solitária
de minha própria visão
nublada, e não há
testemunhas.

Pois estou sozinha.



Do interno para o ambiente, eis a grande ciência, quando o próprio ambiente não dá o primeiro passo, não se apresenta como espaço de acolhida e de língua comum. Eis uma ciência solitária, recôndita, hermética, que agora precisa ter presciência, prevalência, prioridade e dominância sobre todas as demais: sobre todas as outras coisas já ditas, porque é esta mesmíssima ciência que me isola de todo o resto! Eu tenho que construir um caminho de palavras até todos os outros que não souberam, não quiseram, não puderam, não conceberam como chegar até mim. Tem de haver um caminho de palavras até a expressão desse núcleo não enxergado, até a ciência que dá ciência de mim para os outros, uma vez que não estão cientes de mim. Este caminho ainda não está escrito. Não tem registro, não tem registro. É um caminho solo. Eu sou a testemunha solitária de uma paisagem [interna-externa] que 1) ninguém viu, ou 2) ninguém reconhece que possa existir! Tudo é nublado mesmo. Será essa névoa minha, de dentro para fora, ou terá vindo de fora para dentro? Tudo se indiferencia e se mistura.


Eu fiz a pergunta primeira:
“o que se pode dizer a um
terceiro?! Ou devo
arrancar meus
olhos?!".

O primeiro e maior
dilema é a solidão do
olho.

Algo se moveu no meio
da floresta, mas eu estava
sozinha.

Um raio incendiou o galho de uma
árvore, mas só eu vi o fogo originário.

Um animal extinto
foi visto pela primeira
vez por mim, mas correu
fugindo.

Eu segurei o fóssil desconhecido
mas os ossos esfarelaram no caminho
como cinzas, porque estou sozinha,
e preciso inventar uma
nova língua.


.......

Eu fiz a pergunta pela primeira vez: parece que ninguém a fez antes, porque jamais falam dela! O que eu sinto/ é tão longínquo/ quanto um animal extinto. Ou que nunca existiu. Se eu nunca tivesse visto ou vivido o que vi e vivi talvez estivesse em melhor situação: pelo menos faria parte da comunidade dos vivos, dos que se comunicam e têm uma língua. Talvez melhor seria não ter tido olhos, não ter visto, vivido, nascido. O primeiro dilema é dado pelo que 1) só eu vi ou pelo que 2) só eu vejo. As coisas passam rápidas como interjeições, mas não se articulam em substantivos e verbos. São aparições. Alguém se moveu ali, na sombra, mas não deixou as digitais. Não posso dizer nem provar que sou, que sei, que vi, que sinto.

Porque sei e sinto só.






Marcelo Novaes