No capítulo anterior, mencionei alguns aspectos transferenciais presentes na análise de feridos narcísicos, aspectos estes que podem ser cifrados no campo de tensões presentes nas díades Jeová-Jó [O Deus Pulverizador e o sujeito pulverizado] e Pietà-Cristo [a mãe impotente e tardiamente culpada que enxerga o sofrimento do filho como Mártir]. Essas polaridades merecem esclarecimento e aprofundamento, e neste capítulo começarei a enfrentar a questão a partir de Jó e de perspectivas analíticas que tendem a aceitar ou subestimar tal condição. No capítulo seguinte, tratarei da Pietà [Pietá-Cristo], além de explicitar a operação de vetores projetivos e introjetivos no setting analítico [transferência-contratransferência], levando em conta, inclusive, as valências espaço-temporais implicadas neste.
Pensemos em algumas situações concretas de ferimentos narcísicos, cuja autenticidade dos fatos puderam ser corroboradas em terapia familiar. Sim. No momento, eu me valho de situações como estas [onde a família foi atendida], pelo fato de haver um número enorme de analistas [sobretudo os de matriz freudiana e kleiniana] que parecem "suspeitar da valência específica da realidade". Mostrarei, em seguida, que tipo de subversão, inversão, contrafação da realidade psíquica é operada a partir dessa suspeita ideológica dos que abraçam tais modelos dinâmico-estruturais do psiquismo.
Um paciente chega até mim, tomado por preguiçoso e débil mental por seu pai e irmãos. Tem onze anos. Cresceu alvo de chacotas em todos os ambientes, inclusive o familiar. Fica-me claro logo na primeira consulta que o paciente tem um problema de audição. Um exame de audiometria, nunca antes pedido por nenhum dos médicos que o atendeu, revela que o garoto quase não ouve. O paciente quase-surdo foi indevidamente nomeado como preguiçoso, débil mental e coisas assemelhadas. Este é um ferimento narcísico, que nada tem a ver com Édipo. Não se pode fantasiar, analiticamente, pulsões apriorísticas de “ressentimento” e “inveja” do menino, mal-entendidas em clave edipiana, como gratuitamente projetadas sobre os ambientes que o nomearam mal e o prejudicaram nessa nomeação. Fazê-lo [o que equivaleria a ignorar o peso dos fatores ambientais experienciados por ele] seria um erro crasso: tentar inserir sua proscrição-de-fato, precoce e massiva, numa perspectiva triangular do "terceiro excluído". Uma leitura tão alheia aos vetores histórico-ambientais seria, mais do que o sancionamento do erro cometido, um ato adicional de sadismo.
Também é curioso certificar, quando se trata de irmãos em terapia familiar, alguns fatos comprováveis. O mais velho de um desses casos entre irmãos viu, muito cedo, o pai chorar no ombro da mãe sobre “não saber como lidar com as brigas dos filhos”. O mais velho condoeu-se dessa fragilidade paterna [na verdade, uma depressão severa com sintomas obsessivos graves]. Tal pai era um jogador compulsivo e, por conta disso, a família se via ameaçada por agiotas. O menino mais velho, desde os quatro anos, entendera que o dinheiro das despesas de casa era usado no jogo, de modo que pegara escondido, algumas vezes, notas da carteira do pai, entregando-as à mãe, pelo que era severamente punido por aquele, sem possibilidade de intervenção desta. A educação proposta por tal pai era a seguinte: “Se as crianças brigarem, o mais velho vai ficar de castigo; se ele deixar o mais novo fazer algo errado, será responsabilizado por ser mais velho; se ele impedir que o mais novo 'apronte', mas o mais novo chorar ou alegar que o irmão usou da força, será punido por covardia”. Bom, o mais novo usava e abusava desta regra áurea do pai, chorando o quanto podia e chantageando o mais velho o quanto lhe convinha. A regra do pai, de fato, era do tipo classicamente definido por Bateson como “duplo vínculo” e que eu prefiro chamar de nó cego. É um "cara e coroa" com um vencedor único: "Cara, seu irmão e eu ganhamos; coroa, você perde”. Isso instaura familiarmente um interjogo bastante desigual de “muitos contra um”: mãe impotente diante dos castigos pelas tentativas do filho em ajudá-la, filho impotente diante do irmão e do pai, filho com pena do pai zelando por ele a partir do vislumbre do choro depressivo do mesmo. O filho vira “pai do pai”, tem de cuidar de si mesmo, além de se ver posto [e não por acaso ou capricho] num massivo acuamento.
Tais conjunturas factuais foram facilmente recuperadas em terapia familiar. Já com onze e nove anos os irmãos, indagados ambos sobre “com quem o pai errava mais ou era mais injusto nos castigos”, os dois afirmaram a mesma coisa: com o mais velho, para consternação de pai e mãe. O mais novo chegou a revelar várias situações concretas de chantagens com o mais velho, e as coisas funcionavam tão unilateralmente que, em discussões sobre ouvir música, a mãe quebrara a vitrola do mais velho diante dos dois, um presente de aniversário que ele havia ganhado do tio. O mais novo rira, logo após. Na frente de amigos em comum, o mais novo frequentemente dizia: “Veja como meu irmão é frouxo: eu posso bater nele, que ele não reage”. E lhe dava um chute na canela ou um tapa na cara. Ao fazer a menor menção de se levantar para segurar o mais novo, este já corria “chorando” em direção à casa, e o mais velho tomava sua surra e ficava dois meses de castigo [sim, ali os castigos eram bimestrais]. Repito: isso tudo foi assumido e narrado em terapia familiar, inclusive pelo mais novo. O mais velho assumiu que tinha medo de contar detalhes para o pai, porque ele não acreditaria nele e, pior [na imaginação deste], “o pai poderia ficar nervoso e ter um ataque do coração”, já que vira o pai chorar naquela ocasião secreta que lhe infundira “medo pelo pai” [além de medo do pai], desde quatro anos. Ele tinha medo pela saúde do pai, pelas perseguições dos agiotas, pelas brigas com a mãe por causa das contas não pagas, e tudo mais. Assumira muitas “responsabilidades secretas”, eu diria. Todas estas bastante constrangedoras e “surpreendentes” para todos os circunstantes, em terapia familiar. A mãe só pudera entrever o zelo do menino pelas finanças pelos “episódios da carteira”, após os quais o menino recebia suas surras e "castigos bimestrais". Comentou a fala de uma vizinha a respeito de tais castigos: “Seu filho é tão mais comportado que o meu [“levado”, segundo a tal vizinha], que se teu marido fosse pai do meu, o ano teria de ter 500 dias para caber nele todos os castigos que seu marido dá a teu filho”. Essa fala também constrangeu o pai.
Numa sessão só com os adultos, o pai me contou algo a respeito de sua depressão e de seus sintomas compulsivos. Um deles era: “Eu achava, na época, que se dormisse sobre o lado esquerdo, meu filho mais velho morreria”. E outras fantasias de morte equivalentes, sempre envolvendo só o mais velho. Ou seja, havia uma culpa inconsciente expressa nesses sintomas, e ela se dava em relação ao mais velho que, de fato, ficara acuado pelas contingências ambientais familiares. Como negar ou subvalorizar o peso desproporcional desta realidade sobre um específico membro da família, ainda criança? Como abstrair todos estes fatores ambientais bastante eloquentes? Se a criança fosse paciente avulso de um analista que sobrevalorizasse “inveja”, “voracidade” e “ressentimento” edípicos, todo este contexto de sobrecarga [as tais responsabilidades precoces e secretas: zelar pelo dinheiro para a mãe, pela saúde do pai, deixar-se acuar pelo irmão para poupar o pai e evitar que ele “morresse do coração”] seria deixado à margem, ou enormemente subestimado.
Há crianças que desconhecem a justiça como vetor componente da educação, em seu ambiente primário. Frise-se que, acima, eu perguntei às crianças “com quem o pai era mais injusto” e ambas assentiram na mesma resposta. Vi isto ocorrer inúmeras vezes, por razões as mais variadas. Por vezes, os pais tomam sempre o partido do filho ou filha mais “dengoso” e “hábil na manipulação”, em detrimento do mais sincero e assertivo: daquele que, de fato, fala mais a verdade. Outras vezes, há um que ocupa mais de dois terços do espaço simbólico e factual do quarto conjunto [com tênis em cima da cama do outro, posters de seus heróis nas quatro paredes do ambiente comum, que tira três camisetas por dia pra trocar, e usa a do irmão quando uma das suas não está disponível, que não apaga a luz nem desliga os aparelhos eletro-eletrônicos, etc, etc] e do ambiente da casa [fala no telefone uma quantidade de horas muitíssimo superior à quantidade que o irmão usa o aparelho, o mesmo em relação ao computador, etc]. No entanto, quando o pai chega e flagra este que menos usa o computador, diz pra ele: “você não sai deste computador!”; ou “você não sai deste telefone!”, ou quando ele deixa cair uma coca ou um molho numa camiseta [sendo que usa uma por dia, em vez das três do irmão], é dito pelo pai ou mãe, ou ambos: “Pensa que tua mãe é tua empregada?!”. E por aí vai. E isto é confirmado e elucidado por todos os membros da família em terapia familiar. Se tal criança mais acuada no ambiente familiar expusesse essa dificuldade de ocupar seu espaço, analistas mais clássicos atribuiriam tal queixa a “ressentimento”, “voracidade” e “inveja” projetados no ambiente, e não numa invasão ambiental consistente e factual. O que importam os fatos, não é mesmo?
Nicole Berry, em seu livro “O Sentimento de Identidade”, fala do trauma de Henry James assistindo, ainda criança, à derrocada psíquica de seu pai, William James. Sabemos que seu pai teve um colapso, alucinando, inclusive. Pois bem, Nicole analisa a ênfase de Henry James na solidez das paisagens [“uma casa segura para habitar”] como resposta defensiva à perda de segurança na solidez do pai, e das pessoas em geral. Correto. Ela se mostra condoída e consternada em passagens de romances deste autor, como “As Asas da Pomba” que ilustrariam sua “incapacidade para o amor”. O jovem paciente da família acima citada, o que viu o choro do pai depressivo e compulsivo [além de agressivo], teria sua “capacidade de amar” duramente testada pelos anos, a se prolongar mais a condição sistêmica que seu ambiente apresentava, acuando-o, inclusive nas tais “responsabilidades secretas inconfessáveis”. Este halo de acuamento e segredo constituem a ambiência externa-interna [externa, mas internalizada] e o “campo de afetação” que acabam por constituir “o viver cinza-chumbo [o viver nublado] do ferido narcísico”. O surgimento dos solilóquios internos, dos medos sobre a saúde do pai, do silêncio sobre as armadilhas e ardis do irmão, do “engolir em seco castigos injustos”, do ruminar disso em imagens e sonhos sombrios, se dá pelas conjunturas concretas dadas, e não “a despeito e à revelia das conjunturas concretas”. Este raciocínio de atribuir à onipotência infantil e suas fantasias toda a construção imaginal deste ambiente opressivo é extremamente perigoso, na medida em que onera a criança fazendo “vista grossa” para desfuncionalidades ambientais gritantes. O mesmo se pode dizer em relação a certas conjunturas em ambiente escolar, onde há “muitos contra um”, e para as quais pais e professores fazem “vista grossa”. Também o farão os analistas?
Observando um garoto bastante franzino, e cujas notas eram muito altas e em rápido decréscimo, eu lhe pergunto, em frente à mãe, se ele tem inimigos no colégio. Ele enumera vários. Digo que ele deve ser menor do que muitos de seus colegas, e ele me confirma. Pergunto se houve chantagens e ameaças a ele, por “tirar notas muitos altas, sendo tão pequeno”. Ele confirma, citando os nomes e as chantagens. Isso jamais ocorrera à mãe. Aliás, vejo que os pais em geral dificilmente perguntam aos seus filhos “quantos inimigos têm na escola, e por quais razões estas inimizades foram feitas”. Essa é uma pergunta básica que eu faço em qualquer tratamento de crianças, seja em família, seja individualmente. Não ocorrera à mãe, e também não ocorrera à professora. Também não ocorrerá ao analista e/ou ao terapeuta? Imaginarão que a situação de “muitos contra um” se dará por conta de “inveja”, voracidade” e “ressentimento” da criança chantageada ou agredida? Vitimizarão a criança uma segunda vez com tal “leitura”? A nomeação dos “inimigos” desta criança, explicitação de circunstâncias concretas, visitas desses pais ao recreio da escola, conversando com as crianças, entre si, e com os professores e coordenação pedagógica, pôs fim a uma situação “nada imaginária”. Veja o leitor deste blog como a nomeação equivocada da identidade de uma criança é coisa séria: poderíamos tomar tal criança por “tímida” quando, de fato, ela estava sendo “intimidada”. Ainda que houvesse certo grau de timidez na criança, tal traço poderia estar sendo "reforçado por intimidação", e isso se perderia numa leitura menos factual do contexto. Os analistas da premência das pulsões enxergariam o retraimento desta criança como reação a seus “impulsos internos de destrutividade contra as outras” [sic], quais sejam: “inveja”, “voracidade”, “ressentimento”, desconhecendo ou minimizando o fato desta criança ter sido, inquestionavelmente, alvo de inveja e destrutividade ambientais [na fórmula de “muitos contra um”]. Isso é um falseamento tão grave das circunstâncias, e um álibi tão conveniente a [e conivente com] ambientes tóxicos [família, escola, só para ficarmos nestes, por enquanto], que nunca é demais apontar para a falácia e graves implicações dessa leitura falsificadora e re-vitimizadora do bode expiatório familiar ou escolar [também os há nas igrejas e outras instituições]. Sugiro a todos estes analistas que sobrevalorizam a pulsão e negligenciam o peso dos fatores ambientais que avaliem contextos concretos escolares [leiam noticiários, entrevistem alunos] e que leiam René Girard, a respeito de bodes expiatórios e das circunstâncias concretas de sua eleição ["quem é o bode e porque ele assim foi tomado como tal?"]. Uma das coisas que será vista ali é que o bode é eleito “por sua incapacidade de se defender”, ou por sua “inofensividade”. Não é o Elias Maluco que é Bode Expiatório, não. Nada disso. Nem o Bandido da Luz Vermelha, nem os Chefes do PCC, ou membros. Do contrário, eles não capitalizariam seus “feitos” para ganhar respeitabilidade entre seus pares, posarem com fotos sem camisa e com armamento pesado, nem para terem filas de candidatas à visita íntima por serem “machos alfa” em seus respectivos nichos sociais. O Bode Expiatório nunca é o macho alfa. Sua incapacidade de reagir e sua inofensividade serão, por intérpretes desavisados, tomadas por “defesa contra a voracidade” [“eles quereriam ser machos alfa a qualquer preço, mas negam isso para si mesmos!”], defesa “contra um ressentimento prévio à ação que supostamente os ferira” [sim, por vezes é-lhes dito que “fantasiaram a ação para justificar o ressentimento”] e outras contrafações do mesmo calibre. Por já ter visto coisas análogas centenas de vezes, e ter sido em minha infância vítima massiva de coisas correlatas, bato tanto nessa tecla. Não viram meus ambientes tóxicos desde a infância. Também não viram o bullying do atirador de Realengo em sua origem, mas vieram a saber dele “à posteriori”. Enfiavam a cabeça dele na privada, entre outras coisas. [Os professores, à época, devem ter enfiado a cabeça na terra, quais avestruzes]. Eu me pergunto como uma agressões tão severas e humilhantes puderam “passar desapercebidas” [sic], senão com a anuência da “vista grossa” dos adultos em torno. Por isso, uma expressão-chave neste ensaio, “O Olho Que Nos Olha Nos Olhos”, é “o desvio calculado do olhar”. Sabemos que as instituições têm seu quantum de “inveja”, “voracidade” [corrupção], “mentira” [inclusive as oficializadas: as “mentiras de papel timbrado”], “insinceridade” [apadrinhamentos, favorecimentos, critérios alheios à meritocracia], “agressão”, “banimento” [é só investigar porque ex-petistas fundaram o PSOL, por exemplo...] e, no entanto, não podemos conceber [na verdade, não queremos enquanto sociedade] que muitas crianças tenham sido expostas [e ainda o sejam] a ambientes onde este “quantum tóxico” foi [e permanece] conjunturalmente demasiado para o equilíbrio pulsional de qualquer um. Nega-se tal possibilidade e, com isso, reforça-se a leniência com tal estado de coisas, o que é o equivalente a fazer vista grossa para os desmandos administrativos entre adultos. A quem estamos querendo proteger? A quem convém tal “olhar desviado”? Isso é mais do que uma questão individual: é miséria moral coletiva, cinismo institucional. Por isso, pensar o indivíduo de maneira “a” ou “z” também traz implicações coletivas, institucionais, políticas. Assim como defender corrupto ou corruptor por falta do “recibo legal” [mafioso passa recibo?]. Escolas não assumem nem assumirão seus déficits, igrejas idem, famílias absurdamente disfuncionais não se auto-proclamarão como tais. Resta-nos considerar se nós, terapeutas e analistas, quando tivermos sob nossos cuidados alguém que “conheceu na pele” a travessia por tais ambientes com este quantum majorado de toxidade atribuiremos tal desventura a um “quantum pulsional descompensado e majorado neles mesmos [voracidade, inveja, ressentimento] desde a origem”, ou seja; “geneticamente estabelecidos”. Isso á fantástico e extremamente conveniente às instituições “adultas”, pelas quais tais crianças passaram. Vitimizemos os vitimizados uma segunda vez, ou melhor, até neguemos o conceito de “vitimização” ou de “bode expiatório” porque assim os “agentes do dano” permanecerão irreflexivos a respeito. Vide a Escola Adventista do Embu, na região metropolitana de São Paulo, que teve um de seus alunos baleado [e morto] por um coleguinha, em suas dependências, em 2010. O esforço em manter a “respeitabilidade” da instituição fala mais alto do que os fatos e o desejo de apurar o ocorrido. Os mais cínicos, dirão: “Ora, este é o mundo humano, não pretendamos melhorá-lo!” Darwinianamente, os mais cínicos e acomodados com tal estado de coisas, de “domínio territorial dos mais espertos aliado à defesa do prestígio deste domínio” [o que é o caso das vista grossa institucional, seja em hospitais, escolas, igrejas ou família], seja a que custo for [o “custo da sobrevivência dos mais fortes”], dirão que “é bom que as crianças desde cedo conheçam as agruras da vida”. Que tal conhecerem desde cedo “as minas explosivas de fragmentação”, os pedófilos de plantão, os atiradores de cinema ou shoppings? Mas as famílias aberrantes, as escolas, as igrejas e hospitais mutiladores, tudo bem. Isso é cinismo, puro e simples.
Como este ensaio pretende dizer algo ao público leigo, muito mais do que a analistas, essas considerações todas visam a diminuir o grau de “desvio do olhar” por parte de cuidadores, pais e educadores mais atentos e de boa vontade, em relação aos ambientes nos quais criam suas crianças, a partir da própria casa.
Jó foi pulverizado por uma edificante aposta entre Jeová e Satanás. Seu gado foi morto, membros de sua família foram dizimados [porém, “restituídos em dobro” ao término da saga, como se isso diminuísse a impiedade cometida contra aqueles outros tratados como meros peões no jogo de xadrez entre Jeová e seu Sócio-de-Disputa], uma barbárie inquestionável, em nome da checagem da fidelidade de Jó ao Bom Deus. Quando Jó profere seu desalento e queixumes diante do Senhor, Este lhe surge no meio de um Redemoinho, e responde a este em termos de Poder e não de Justiça. O fato de aparecer no meio de redemoinho [como, no passado, no alto da montanha, fumegando, ou na sarça ardente] é bem apropriado, uma vez que Jeová é um Deus Tonante e Meteorológico [vulcão-raio], nos moldes de Adad, Thor, Taranis, Baal, Indra, Zeus-Júpiter e que tais, sem um grão de superioridade ética em relação a seus pares. Aliás, na disputa de Elias com os sacerdotes de Baal, temos fogo contra fogo: um deus tonante tribal midianita em disputa com outro deus tribal judeu. Jack Miles, ex-jesuíta, já apresentou as implicações éticas de se interpelar um Deus em certo âmbito [a Justiça] e receber a resposta em outro diverso [o Poder]. Ampliou esta análise, desde “Deus: Uma Biografia [que mostra a trajetória ideológico-comportamental de Deus, e seu temperamento instável e caprichoso, do Genesis a Jó] até “Cristo: Uma Crise na Vida de Deus”. Sim: Cristo problematiza Jeová enormemente. Harold Bloom também já comparou Javé/Jeová ao Abba [papai] de Cristo, e muitas comparações já foram feitas entre o Deus do Antigo Testamento e o do Novo. Jung já o fez em seus próprios termos, tantos em sua correspondência completa publicada, quanto em Resposta a Jó. Como há muito a se ler a respeito, inclusive as resenhas críticas a estes livros feitas por protestantes e católicos, só deixo registrado aqui o tema, para inscrevê-lo no âmbito das Figuras Imaginais [Arquétipos, Imagos Tonantes] que irão se imprimir [ou ser evocados em tonalidade mítica] na psique infantil, a partir deste emblema-gatilho do "Deus Tonante".
Uma criança é subjugada. Apanha gratuitamente. Seu pai monta-lhe sobre o corpo, tendo mais de seis vezes o seu peso, apoia joelhos sobre seus braços abertos e esmurra a criança. Esta fala: “Mas eu não fiz nada!” O pai, continuando a bater-lhe, responde enfurecido: “E daí?!”. A pergunta foi feita em termos de Justiça [“O que eu fiz, pai?”], a resposta foi dada em termos de poder [“O que importa? Eu sou mais forte!”]. Jeová, diante dos lamentos de Jó, alega que fez coisas enormes de cujo tamanho e grandeza Jó sequer consegue cogitar. Jean Yves-Leloup, em sua autobiografia, O “Absurdo e a Graça”, diz que trair a confiança de uma criança quanto ao sentimento de justiça é uma das coisas mais graves que se lhe pode fazer. Conta um episódio de sua infância que deixara marcas até a vida adulta, sobre confiança, valoração da verdade, e outras implicações. Chegara com menos dinheiro em casa do que sua mãe esperava, porque o lanche da cantina havia aumentado de preço. A mãe castigou-o e o chamou de mentiroso. No dia seguinte, levou a nota do valor do lanche aumentado, ao que foi mais uma vez punido e obrigado a escrever “n” vezes num papel: “Nunca desminta tua mãe”. A verdade não estava em jogo, nem os fatos [a verdade dos fatos, em suma], mas somente o direito à força. Essa é uma ferida narcísica, que fere/trai os olhos, os atos, a palavra, o comportamento da criança, em favor do direito à posse, domínio, subjugação, arbítrio, direito à força constritiva daquela [ou daquele] que dela deveria tomar conta, o que é mais trágico. A outra criança acima aludida, vítima das explosões paternas, caiu no berreiro enquanto continuava apanhando, e seu desespero passou a ser, a partir da fala do pai [“E daí?!”]: “não importa a justiça aqui, não importa o que eu faça, estou sob o controle do descontrole [ou do capricho] do meu pai”. Mesmo que a criança não verbalize para si a fala com tanta clareza sintática, o seu desespero legítimo [e friso a palavra legítimo] leva tudo isso em consideração: a verdade e a justiça não fazem parte das regras do jogo, só a força e o arbítrio. Conseguem os analistas das pulsões de “inveja”, “voracidade” e “ressentimento” à priori, ou não ambientalmente motivados, dimensionar a dor que uma criança dessas sente? Tais analistas conseguiriam estar no lugar dessa criança sem se desesperarem? Quereriam estar em seu lugar? Quando, contratransferencialmente, um paciente adulto faz evocar no analista um sentimento de “não-saída” ou “acuamento”, de todo inoportuno e constrangedor, “estranho” ao analista, é no esforço inconsciente de comunicar a este analista o “tônus” e o “quantum” de sua dor tão precoce, e não por “disputa edipiana” ou “inveja” do analista.
No capítulo anterior, fiz uma breve menção à tese de Álvaro Ancona de Faria sobre O Transtorno de Personalidade Borderline, lido numa perspectiva simbólica [junguiana]. Colocarei duas pequenas citações do trabalho em questão, para efeito de avançarmos em nosso raciocínio. Ali, antes de fazer a abordagem analítica de tais pacientes, Ancona de Faria firma que tais pacientes sofreram abusos emocionais diversos, e elenca variáveis significativas sobre tais abusos, quais sejam: idade do início do abuso, relação segredo-revelação do abuso [“a quem dizer ou pedir socorro?”, diria eu], frequência e duração dos episódios, severidade, etc. Ele o faz citando Joel Paris, que fez este inventário a respeito de pacientes borderlines [um segmento dos grandes feridos narcísicos, além dos esquizoides] em relação a abusos sexuais. Mas não só, acrescento eu. Aliás, estou citando vários exemplos de abusos não sexuais. Todos os critérios de tônus e quanta [plural de quantum] que se referem à soma, duração, extensão desses abusos e cumplicidade do ambiente social ao abuso [“não há a quem pedir socorro”] são agravantes do quadro de ferimento narcísico. Sendo assim, após fazer um inventário de fatores constritivos da identidade desde a primeiríssima infância destes pacientes, Ancona de Faria faz a seguinte observação em sua tese:
“Na patologia borderline encontramos determinadas peculiaridades, ligadas à história de vida e às experiências vivenciais da infância, que desenham uma configuração da psique muito particular.
Estes indivíduos têm uma história de vida onde o período da infância se deu de maneira extremamente dura. Retomando alguns dados apresentados dentro do modelo de personalidade de Paris, vimos que, além da história frequente de abuso sexual infantil, na maior parte das vezes este abuso se dá num contexto de abuso físico e verbal, violência familiar e negligência” [op. cit., p. 35].
Abuso físico, verbal, violência familiar ou institucional, e negligências, o que inclui omissões de socorro-intervenção quanto a estes abusos. Jean Bergeret, em seu “A Personalidade Normal e Patológica” já frisava que, no caso de estruturas borderline de personalidade, os pais tinham sido vistos mais como “grandes” [poderosos, “míticos”, em minha própria linguagem: tonantes, pulverizadores] do que “sexuados” [ou investidos de desejo pelo filho(a)]. O que prepondera é o terror, ou “o medo de pulverização” [vide Jó]. E, acrescento eu: nada de “castração”, no sentido de “demarcação de limites à onipotência”, mas sim medo de ser “esmagado em sua identidade”. Essa é a peculiar problemática do grande ferido narcísico, sobretudo borderlines e esquizoides. Os assim-chamados fálico-narcisistas [o tipo narcísico do senso comum, aqueles "vaidosamente auto-referentes"] experimentaram, em média, um quantum menor de invasão ambiental e maior ambivalência nos cuidados por parte do(s) ambiente(s) primário(s): alguma quota de reconhecimento e até de “premiação seletiva”, ao lado dessas responsabilidades secretas e/ou "indizibilidades referentes a algumas de suas experiências". O grande ferido experimentou, ampla e continuamente, “O Grande Terror”, ao modo de Jó.
Margaret Little, uma assumida borderline que se tornou analista [foi analisada por Winnicott], faz a seguinte afirmação logo no início de sua autobiografia: “a sexualidade está fora de propósito e sem significação alguma quando não temos assegurada a própria existência, sua sobrevivência e sua identidade”. Jaques André é um psicanalista que muito se incomoda com essa peremptória assertiva de Margareth Little, tanto que vive a repeti-la [para contradizê-la] em muitos de seus artigos. O leitor hoje pode conferir facilmente seus argumentos fazendo busca na web, uma vez que os artigos de Jaques André constituiriam uma espécie de "bibliografia lateral" a meu propósito expositivo. Menciono-o apenas para aqueles que gostam de chover no molhado, cotejando [ou compilando] as sempre-repetidas ladainhas psicanalíticas clássicas.
Voltemos a Ancona de Farias. Diz ele:
“[...] o que vemos é um estado de privação afetiva permanente, onde a negligência em relação aos cuidados requeridos pela criança é o que está presente de modo mais significativo, por vezes acompanhada até de uma certa crueldade.
Como representação na experiência subjetiva destes indivíduos de todos estes fenômenos poderíamos usar o termo incontinência [itálico do autor]. Os pais ou cuidadores deste paciente não puderam dar continência às dificuldades pelas quais passou este indivíduo; do mesmo modo tampouco se dispuseram a apreciar as qualidades que este apresentou.
A sensação que o indivíduo tem, a partir daí, é que deve permanecer o mais desapercebido possível, pois tudo que vem dele causa problemas: se por um lado suas dificuldades não geram empatia em seus pais, trazendo como resposta algo como “não me traga mais problemas que já os tenho bastante”, por outro lado parece que suas qualidades ou sucesso trazem aos pais uma inveja destrutiva.
O indivíduo aprende então que não deve fazer revelações de si mesmo, e que fazê-las traz só desapontamento e dor (Charlton, 1988). Constrói uma forte convicção de que as pessoas não são seguras e que estão interessadas somente nas próprias gratificações (Silk, 1995). Conclui que elas não são fidedignas, não podem ajudar e são inconsistentes, gerando uma expectativa de não confiança no outro (Livesley, 2000).
O mundo parece ser um lugar aterrorizador. A experiência que ele ofereceu para estes indivíduos é de vivência e proximidade exclusivamente com o numinoso negativo. [...]” (p. 36-38)
Na passagem acima, valendo-se de três autores, Randolph Charlton, W. John Livesley e Kenneth R. Silk, Ancona de Farias diz algumas coisas que repercutem os exemplos que eu próprio dei acima. Esses indivíduos não tiveram continência ou suporte ambiental [Cifra: a falta de holding, para Winnicott, conceito tanto citado por mim]. Não foram só vítimas de negligência [ou falta de continência], como também de um quantum de crueldade [violência física, castigos injustificados, por exemplo]. Tiveram o sentimento que não tinham ninguém confiável para falar sobre si [no caso do menino que mencionei: falar para o pai agressor que tem dó dele, porque o viu chorando? Que teme por ele e pela própria família, pelas ameças de agiotas que capta no ambiente?]. O que fazem de bom não é reconhecido [no caso do menino: reservar um dinheiro para que a mãe pague as contas, escondida do pai; no caso do pai, engolir em seco as chantagens do irmão e os castigos injustos decorrentes de suas chantagens, para poupar o próprio pai]. No caso que acabo de citar, a esmagadora maioria dos analistas não seria capaz de conceber esses gestos de sacrifício e altruísmo por parte da criança, imaginando-os defesas contra impulsos de retaliação ou vontade de morte do pai. Com isso, estariam reinstaurando a impossibilidade de dizer-se por parte do sujeito ferido. Estariam falseando sua identidade em nome da premissa de seus quanta apriorístico de “voracidade”, “insaciabilidade”, “inveja e ressentimento” [inclusive em relação ao irmão, numa indevida clave edipiana!], além de não conceberem as peculiaridades tóxicas de seu ambiente primário, negando-lhes a existência, na prática, e desqualificando “o dizer de quem viveu aquilo”. Negando o self da criança. Bastante perverso, não acham? Se pensarmos no garoto chantageado na escola para tirar notas mais baixas, sua inteligência foi alvo da inveja e chantagem ambiental. A inveja e ataque partiram do ambiente, e não do menino posto no papel de bode expiatório [“muitos contra um”]. Da mesma maneira, percebe-se uma sutil retaliação invejosa do pai [no primeiro caso], pelo filho “se atrever a fazer o papel que deveria ser dele, pai” [=separar um dinheiro para custear despesas, em vez de dissipá-lo no vício dos jogos]. Podemos explorar e “enxergar” cada nuance dessa problemática nos grandes feridos narcísicos, “se assim o desejarmos”. Um dos obstáculos para isso seria aquilo que eu chamo de “covardia epistemológica”. Vou explicitá-la um tanto, acompanhando algumas indagações retóricas de Nicole Berry [de si para si] para, depois, responder às mesmas.
No capítulo VI do seu livro “O Sentimento de Identidade”, perguntando-se sobre o trabalho analíticos, diz Nicole Berry:
“E embora escrevamos que ‘o paciente vem para ser amado’, não viria ele primeiramente para ser reconhecido? O sentimento de nossa identidade não é mais importante, mais urgente do que o prazer? [Grifo da autora]. Se o homem busca um objeto, não seria mais para entrar em relação do que para obter dele um prazer efêmero? O prazer não seria um luxo? Foi Farbairn, esse analista do país dos nevoeiros e das urzes, que inovou essa tradição de pensamento: object seeking, mais do que pleasure seeking. [Itálicos da autora: a busca do objeto antes do que a busca do prazer]. Um objeto que deve ser percebido nas brumas, apalpado,a cariciado, cheirado. E este outro homem do Norte, Winnicott, não afirmou o first being [idem, o “ser primeiro”], negligenciando, cremos nós, os prazeres da sexualidade infantil?” [p.100-101].
Devo dizer que Nicole Berry tenta se aproximar dessa tradição, mas reluta, como veremos. Ela tem certa simpatia por Fairbairn e Winnicott, ambos já elogiados por mim sobretudo por estarem atentos a esta reversão de prioridades, milhas adiante das construções kleinianas. A propósito, já citei a deliberada má vontade da Grande Dama em ouvir o que os dois tinham a dizer a respeito, em seus pormenores; autoritaríssima que era, chegou inclusive a ouvir o que Fairbairn suplicou que ela escutasse. Confira-se a biografia de Phyllis Grosskurth sobre a desagradável prima-dona: “O Mundo e a Obra de Melanie Klein”. No índice remissivo, percorram os verbetes “Donald Winnicott” e “Ronald Fairbairn” e poderão acompanhar alguns dos atos daquela senhora. Se percorrerem a evolução do pensamento de Paula Heimann, tanto na biografia citada como no texto de Franco Borgogno, “Psicanálise como Percurso”, terão um retrato ainda mais completo [e muito menos idealizado] de Melanie Klein.
1) E embora escrevamos que ‘o paciente vem para ser amado’, não viria ele primeiramente para ser reconhecido? O sentimento de nossa identidade não é mais importante, mais urgente do que o prazer?
Infinitamente mais, Nicole. Vem antes a premência de se sentir-sendo-em-relação: tanto na ordem do tempo, quanto na ordem do valor, da importância. Tal necessidade tem primazia cronológica e axiológica em relação à busca por gratificação. Esta última sobrepõe-se à necessidade subjacente daquela, e não o inverso. A primeira não deriva da segunda.
2) Se o homem busca um objeto, não seria mais para entrar em relação do que para obter dele um prazer efêmero? O prazer não seria um luxo?
Nas condições de privação de reconhecimento ao self, o prazer é impensável. Mais tarde, quando puder ser pensado e experienciado [na puberdade, provavelmente, uma vez que tal infância é envolta em brumas maiores do que as da Escócia de Fairbairn], o prazer poderá ser buscado como “tentativa de preenchimento de vazios”, como “cola provisória para o sentimento de eu-mesmo”, como sopro vital obtido efemeramente, na impossibilidade de se sentir “vivo e inteiro”. O prazer, visto como substitutivo para a “vitalidade-em-falta”, será um elemento de adicção e busca sôfrega de “autoconsolidação no sentimento de sentir-se sendo”, mais do que qualquer outra variável edípica clássica.
3) Este outro homem do Norte, Winnicott, não afirmou o first being [itálico da autora, o “ser primeiro”], negligenciando, cremos nós, os prazeres da sexualidade infantil?”
Nicole, Winnicott afirmou, sim, o first being, o ser primeiro [=primeiro, o ser], mas não negligenciou a sexualidade infantil. Apenas soube escalonar melhor uma escala de prioridades ontológicas factuais.
Quero prosseguir com o “pensar em voz alta” [ou o solilóquio] de Nicole, para poder avançar um pouco.
“Winnicott foi o [analista] que esteve [que foi, penso haver uma inadequação na tradução; o itálico é meu] mais longe na exigência de reconstrução [reconstrução dos fatos e vivências do ambiente primário no contexto da relação transferencial analítica], fazendo corresponder, termo a termo, uma capacidade psíquica a uma vivência genética:
- holding [suporte ambiental] e integração de si;
- handling [manejo ambiental] e personalização;
- apresentação do objeto e relação com o objeto.
Tal concepção faz da criança a vítima por demais passiva do seu meio. Só resta ao psicanalista take care [tomar conta] com uma confiança toda britânica.” [p. 206] [Os itálicos são da autora, as observações entre colchetes são minhas].
Nicole, os adultos que cuidam da criança têm poder de vida e morte sobre ela. Isso é básico e ponto pacífico. Se um pai coloca uma criança de frente a uma parede, diante de uma tomada, proibindo-a de sair de lá, com surras e etc, impedindo-a até de ir ao banheiro, ela poderá tomar choque se quiser se distrair, e irá urinar na calça, por culpa do pai, e não dela. Não haverá escolha. Se o pai [ou mãe] quiser trancá-la no quarto sem lâmpada [“iremos tirar a lâmpada, para o viadinho não crescer medroso”], de castigo, sem jantar, a criança terá medo e fome conjugados, e associará o sono à punição, por engenho e ato concreto de seus pais. Se quiserem tirá-la da escola e obrigar a criança a outros afazeres, até para gratificação deles próprios [“tome conta de seu irmão enquanto eu vou beber no bar”] esta criança não estudará. Assim sendo, a criança é vítima passiva, sim, de seu meio e, sobretudo de seus cuidadores. Vítima indiscutível e inescapável, sobretudo se os seus pais assim o quiserem. Pode ser até refém. Pode tomar um murro, ou muitos, ser estuprada, ridicularizada, torturada, segundo os caprichos, maldade ou doença de seus pais ou cuidadores. Alguma dúvida a respeito?
“Melanie Klein, insistindo na atividade fantasística da criança, e dizem, negligenciando a realidade, devolveu à criança seu status de ser humano.
O que seriam os “cuidados maternos” se não encobrissem uma conivência fantasística entre a mãe e e criança, e certamente também o pai?
As reconstruções genéticas devem ser tomadas, em parte, como lembranças encobridoras: acontecimentos reais investidos dos desejos mais contraditórios. Uma criança foi amarrada. Era a época das “camas-jaula”. Ei-la agora atada ao divã, invadida pela angústia de ser imobilizada. Há aí simplesmente relação de causa e efeito? Que importa? O essencial é essa extraordinária agilidade do espírito que se desenvolveu nela. Agilidade paralisante para o analista, instaurando o prazer de dominar. E a relação interpessoal que se poderá, aos poucos, analisar representa uma relação intrapsíquica: é o desejo sádico que está arraigado, o desejo de imobilizar o outro. Assim, a criança quer ainda se crer vítima para ignorar o combate que nela ocorre, e a raiva impotente de outrora. A elaboração psicanalítica não tem que denunciar ‘realidades’ passadas; é o combate interior que lhe interessa, que paralisa, ainda hoje, o paciente. “ [p. 208-209].
Vamos examinar com muito carinho este trecho de Nicole Berry, porque ele é eloquente e sintomático.
1) Melanie Klein, insistindo na atividade fantasística da criança, e dizem, negligenciando a realidade, devolveu à criança seu status de ser humano.
Não. O status de ser humano pode ser subtraído da criança por um tratamento desumano ou sub-humano, para não dizer até mesmo cruel. Se Melanie Klein “insistiu tanto” nessa atividade fantasística, do que ela, Melanie Klein, estava se defendendo? Sabemos que dá um trabalho razoável avaliar o peso de uma realidade não-condizente com os parâmetros sócio-institucionais tão cinicamente defendidos pelo status quo e assumir a tarefa de admitir que a família, a escola, a igreja, o hospital podem “ser bem piores do que a encomenda”, não é fato? Onde reside a covardia e onde a coragem? Estaria o analista desviando o olhar da gravidade do peso das circunstâncias ambientais neste paciente que traz sua infância para o divã? No que diz respeito a “dizerem que ela [Melanie Klein] negligenciou a realidade”, concordo com os que assim o afirmam.
2) O que seriam os “cuidados maternos” se não encobrissem uma conivência fantasística entre a mãe e e criança, e certamente também o pai?
Gostaria de saber o que seria a “conivência fantasística” de qualquer das crianças acima citadas. É claro que um mundo de imagens irá se imbricar aos dolorosos fatos vividos. Mas qual a conivência dela com um pai ameaçado por agiotas? Com a regra de “seu irmão fez arte, você apanha porque o deixou fazer; se brigar com ele, apanha porque foi covarde com o irmão mais novo”? Qual a “conivência” com tal regra arbitrária? Se urinar na calça porque não pode se levantar de um canto de castigo, qual sua conivência? Se for tirada da escola e obrigada a fazer tarefas domésticas, sob domínio adulto, qual sua conivência?
3) As reconstruções genéticas devem ser tomadas, em parte, como lembranças encobridoras: acontecimentos reais investidos dos desejos mais contraditórios. Uma criança foi amarrada. Era a época das “camas-jaula”. Ei-la agora atada ao divã, invadida pela angústia de ser imobilizada. Há aí simplesmente relação de causa e efeito? Que importa? O essencial é essa extraordinária agilidade do espírito que se desenvolveu nela. Agilidade paralisante para o analista, instaurando o prazer de dominar. E a relação interpessoal que se poderá, aos poucos, analisar representa uma relação intrapsíquica: é o desejo sádico que está arraigado, o desejo de imobilizar o outro. Assim, a criança quer ainda se crer vítima para ignorar o combate que nela ocorre, e a raiva impotente de outrora. A elaboração psicanalítica não tem que denunciar ‘realidades’ passadas; é o combate interior que lhe interessa, que paralisa, ainda hoje, o paciente.”
Aqui nós temos a clara implicação deste raciocínio. Os desejos contraditórios apontados por Nicole, no rastro de Melanie Klein, são post factum, eles não “co-engendram” nenhum dos fatos que exemplifiquei acima. Nenhum deles. Se a criança tem um pai tirano, ambíguo, com regras que são verdadeiros “nós cegos” [“escolha a ou b: nos dois casos perderás!”], se na Igreja aprende a ter medo de Deus e do Diabo, qualquer ambivalência que a criança experimente em relação ao pai ou a Deus [os tais sentimentos contraditórios: amar a Deus e temer a Deus, ou odiá-Lo; temer a morte do pai e desejá-la, para tomarmos os clássicos dilemas edípicos] não co-engendram a tirania, nem as palavras do Antigo Testamento que foram ministradas à criança, por escolha dos adultos. Tais sentimentos contraditórios não “encobrem” os fatos tempestuosos e as ciladas nas quais a criança se viu “enredada”: a multivalência de seus sentimentos no rastro de tais fatos não co-determinam, retroativamente, sua emergência, como se fosse “parte de sua escolha”; não foram “escolha da criança”: foram "pós-tingidos" com sentimentos ambivalentes, confusos e contraditórios por parte da mesma, o que é coisa bem diversa de supor a criança co-engendrando o fato, sendo corresponsável por qualquer das escolhas ambientais que eu enumerei acima.
Se, diante da apresentação do fato: “Uma criança foi amarrada. Era época das ‘camas-jaula’. Que importa?” Este “que importa?” é o mesmo “e daí?” do pai que espanca a criança sem motivo, ou da mãe que mantém o castigo e o duplica porque as criança lhe prova que, de fato, o lanche da cantina custava o valor que a criança alegara na véspera. Ela apanhara acusada de ser mentirosa. Agora, apanhará uma segunda vez e fará uma penitência por “ousar provar que disse a verdade”. Que importa? Aqui, temos uma desqualificação da trajetória biográfica da criança e seus impasses, em nome da comodidade do analista que prefere entender o seguinte: “O que importa é que, agora, você está me imobilizando contratransferencialmente. Sua profusão de palavras ou imagens me deixa paralisado (a) e é este seu sadismo que importa analisar agora”. Se parte do processo contratransferencial é captar o que o paciente tem dificuldade de dizer [inclusive as nuances de sua dor], “insistir”/ enfatizar o desejo sádico da criança imobilizar quem a imobilizou, “negando a imobilização”, e dizendo, ainda mais, que a criança “quer se crer vítima” [ela foi vítima!] para ignorar o combate que nela ocorre [que, em grande parte, decorre do fato, e não lhe antecede] e sua “raiva impotente de outrora”? Quem diz que o paciente traz isso para ignorar o que disso decorre? Na verdade, quer-se dizer: “com ou sem isso, haveria raiva”. Uma raiva sem estas colorações específicas, por certo. Achata-se a nuance da vivência, sua especificidade, para encobrir a impotência do analista quanto ao que já ocorreu. Isso ficará mais claro no próximo trecho que eu selecionei deste trabalho de Nicole.
“Ao contrário de uma submissão passiva às incoerências ou às coisas bizarras de um meio ambiente, M. Klein traz essa noção essencial de um ego originário. É bem verdade que o seio pode estar vazio, a mãe ausente, a criança perseguida por olhos. Ela pode, então, clivar seus objetos externos e internos: um mau frustrado, perseguidor, um bom idealizado, mantido à distância, mas guardado à mão. Há esperança de retorno. O que poderia fazer o analista vinte anos depois? Ele não pode mudar o ambiente, nem a mãe de outrora, nem substituir, nem reparar. Mas eis o que nos diz essa mulher do Norte: as pulsões intensas demais causam medo; a intensidade dos desejos é perigosa; é preciso, também, por a mãe do outro lado da janela. Para que ela não se estrague. A “mãe estranha” estava, talvez, mais próxima do que se podia imaginar? É porque a criança estava ávida demais, desejosa demais, que a colocou longe, do outro lado, intocável, para preservá-la? Então, o analista sabe do que é capaz: lembrar as fantasias, associá-las, e o paciente pode tomar consciência, aqui e agora, da intensidade de suas necessidades de amor, de posse exclusiva; os objetos que acreditava perdidos estão, doravante, ao alcance do pensamento”.
Bom, aqui temos a epítome de um pensamento que dá as caras e diz a que veio. Não é nada nobre o que ele revela, nem me parece bem intencionado. Em primeiro lugar, quer-se diminuir o potencial do meio ambiente ser, de fato, bizarro “além da conta”. Pode ser, inclusive, um ambiente mau, mas não se quer crer nisso. Por que não se quer? Se há um mau ato no governo, culpe-se a imprensa; se há memórias que denotam um ambiente muito tóxico [e incomodamente tóxico ao analista], culpe-se o relato do paciente! A coisa, no fundo, é exatamente essa. Nicole mostra seu incômodo com a impotência do analista frente a uma história factualmente pesada ou sórdida. Talvez, ela não sobrevivesse psiquicamente a esta própria história! A mãe ausente pode ter sido posta à distância, olhando a janela, por defesa da criança, frente à sua “insaciabilidade”: ávida demais, desejosa demais. A avidez da criança deve ter colocado o pai sobre ela muitas e muitas vezes, esmurrando-a e dizendo-lhe: “E daí que você não fez nada? Eu mando aqui! Eu bato porque posso!” A avidez, o elán da criança adotiva de Goiânia fez com que sua mãe a amarrasse, a fizesse engolir fezes, cortasse sua língua com alicate de unha, etc, etc. Vocês conhecem a história? Em que mundo esses analistas pensam viver? Em vez de considerarem a crueza ou crueldade da potencial subjugação adulta que se impõe sem dificuldade à criança [bem como a de "muitas crianças contra uma", no ambiente escolar], querem fazer crer que tudo é uma questão fantasística [e defensiva] de desejo de “posse exclusiva”? Foi o desejo de “posse exclusiva” da menina adotada em Goiânia que a colocou na condição de refém? A empresária bem sucedida, moradora de uma região nobre de Goiânia, Silvia Calabrese Lima, talvez parecesse insuspeita aos olhos de um analista com este perfil. No entanto, ali estavam os fatos: unhas arrancadas, língua cortada, marcas de queimaduras de ferro no corpo e nas nádegas da menina, obrigada a comer fezes e beber urina de cachorro, entre outras barbaridades. Tal senhora tinha, à época, uma empregada omissa [cúmplice por intimidação, supõe-se] e três filhos, sendo dois deles bem grandinhos: 20 e 21 anos à época.
O que fez tanta gente ficar em silêncio? Talvez o mesmo “pudor” que faz certos analistas não poderem conceber ambientes com certo “quantum” de bizarrice ou perversidade. Eu chamo a isso co-perversidade, covardia moral e covardia epistêmica. Tapar o sol com a peneira. “Preferir não crer”, por comodidade metodológica no divã. Diz Nicole Berry: “O que poderia fazer o analista vinte anos depois? Ele não pode mudar o ambiente, nem a mãe de outrora, nem substituir, nem reparar. Mas eis o que nos diz essa mulher do Norte: as pulsões intensas demais causam medo; a intensidade dos desejos é perigosa; é preciso, também, por a mãe do outro lado da janela. Para que ela não se estrague”. O analista, em primeiro lugar, pode admitir o fato e trabalhar com os sentimentos [inclusive os contratransferenciais] decorrentes e desdobráveis dos fatos. Uma mãe adotiva como Silvia Calabrese Lima é perigosa, não a avidez da menina torturada. Um pai que monta de joelhos sobre uma criança para espancá-la é perigoso, não a avidez ou ambivalência desta criança sobre ele. Agiotas cercando a casa de um viciado devedor são um perigo. No próximo capítulo eu exemplifico o que um analista com perspectiva bastante diversa pode fazer com "fatos consumados e sentimentos a eles relacionados".
Marcelo Novaes
Bibliografia sugerida:
Bergeret, Jean. (1998). A Personalidade Normal e Patológica. Artes Médicas: Porto Alegre.
Berry, Nicole. (1991). O Sentimento de Identidade. São Paulo: Escuta.
Bloom, Harold. (2006). Jesus e Javé: os Nomes Divinos. Rio de Janeiro: Objetiva.
Borgogno, F. (2004). Psicanálise como Percurso. Rio de Janeiro: Imago.
Faria, Álvaro Ancona de. (2003) Transtorno de Personalidade Borderline: Uma Perspectiva Simbólica. Monografia em PDF.
Girard, René. (2004). O Bode Expiatório. Paulus: São Paulo.
Girard, René. (2008). A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra. 3ª Edição.
Girard, René. (2012). Eu via Satanás cair como um relâmpago. Paz e Terra: São Paulo.
Grosskurth, Phyllis. (1992). O Mundo e a Obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.
Leloup, Jean-Yves. (2003). O Absurdo e a Graça (autobiografia). Verus: Campinas.
Little, Margaret I. (1990). Psycotic anxietes and contaiment: A personal record of an analysis with Winnicott. Northvale, NJ: Jason Aronson.
Miles, Jack. (1997). Deus: Uma Biografia. Companhia das Letras: São Paulo.
Miles, Jack. (2002). Cristo: Uma Crise na Vida de Deus. Companhia das Letras: São Paulo.