Ser um Outro para Si Mesmo: Caos e Esfinge









Emannuel Bresson escreveu uma “biografia poética da loucura”. Narrou, poeticamente, sua esquizofrenia. “O Menino que Perdeu sua Morte” é sua autobiografia. Fala de cisões, de companheiros internos desde a infância, de observar-se a si mesmo como um sujeito-objeto interno [M.], acompanhado de seu fantasma e de sua morte. De ser sujeito-dejeto e de ser sujeito morto, desde criança. Como este é um livro que já está escrito, não faz sentido algum parafraseá-lo, mas só me apropriar, de memória, de um dos seus trilhos para apresentar meu tema do auto-estranhamento [“ser um outro para si mesmo”].

Os fatos externos da primeira infância são singelos; suas repercussões íntimas e as reminiscências delas decorrentes, não têm nada de trivial.

A descrição do pai de Emannuel seria a de um casaco. Alguém sem corpo vital, sem afetividade, sem verdade. Alguém apoiado em ideias sobre ser, não sobre seu ser legítimo. Uma persona ambulante. Um falso self. Um casaco do qual as idéias apinhavam como enxames de enxames. Eis um pai insubstancial e irreal. Sua mãe estava afetivamente apartada de Emannuel pela influência crítica de uma tal de tia Bertha, figura bastante dominante na família. Coloquemos na tia Bertha um jaleco militar, que estará de bom tamanho, figurativamente falando.

Há uma casa onde passar as férias, dos avós. Uma casa cujo cheiro de mofo é um consolo. Há um jardim nesta casa, e estar ali é um consolo. O menino, no jardim, imagina-se sem pai, sem mãe, e sem limite espacial sobre a cabeça: emoldurado por vazio, solidão, e Infinito. Em vez de arrumar pais imaginários, o conforto do menino é saber-se/pensar-se órfão, e com o Infinito acima de si. Nada de “pais imaginais substitutivos”. [Sempre direi “imaginais” em vez de “imaginários”, por cuidadosa escolha semântica].

Este jardim é o “lar” do menino solitário, ou ensimesmado. Isso, até ele ser um estranho para si mesmo.

Há o jardim, o casaco-invólucro do pai, a voz de Tia Bertha, a distância do corpo afetivo materno, o assassinato interno de ambos, e o vasto céu por testemunha. Há uma senhorita que cuida da educação do menino, uma preceptora. E há um sonho inaugural do Caos, da fragmentação, da esquizofrenia. Este sonho se dá aos seis anos, e irá se repetir. Logo virá o diagnóstico, emitido pelos “bois”, que é como Emannuel carinhosamente apelida os psiquiatras, pela sua falta de visão e subserviência a uma certa nosografia burocrática. Continuará chamando-os “bois” mesmo quando adulto. Talvez por sua compreensão ser mais nuançada e imagética do que a deles. Sua leitura de si mesmo, obtida a custo, ao longo dos anos.

Vamos ao sonho, emblemático. Há uma Música que nunca se ouvira, majestosa, permeando o Jardim. A música é grandiloquente e parece emoldurar, com perfeição, a Vida ali representada, com tudo que Ela comportaria. A Música Perfeita Inimaginada. O cenário é sonoro, além de plástico. Uma nota sai do lugar. Uma única nota, destacada. Toda a música se rearranja a partir dessa desconstrução, até representar a Cacofonia ou Caos mais Absoluto, de Aterrador e Insuportável. O cenário sonoro se inverte. Isso se faz acompanhar de uma inversão no cenário plástico, concomitante e correspondente: as plantas e flores passam a crescer em direção ao “dentro da Terra”. Cacofonia Absoluta e Vida Introvertida ao Útero Telúrico Primal. A percepção do conjunto é aterradora, faz o menino suar e “se ver sonhando” [enquanto sonha, sem sair do sonho], vendo-se na cama, com os lençóis sujos por baldes de imundície. O sujeito dejeto é recoberto por fezes ou esgoto. Isso se repete, com nuances. Numa das vezes, o menino se vê correndo em meio a essa paisagem invertida e cacofônica, sobre quatro patas, como um animal. Corre e corre para fugir da música e da Vida que se inverte. Sonha-se como um tigre, e acorda montando sobre a preceptora que dorme na cama ao lado, tendo ela cerca de setenta quilos. Ele é um “tigre apavorado e raivoso”, quando acorda. Luta por sua sobrevivência. Que ninguém seja tão apressado ao imaginar a cena primária freudiana [o coito dos pais] em episódio tão rico e nuançado. A partir daí, o diagnóstico se corroborará ao longo dos anos, ao longo do futuro-sem-futuro. Tempo e espaço na esquizofrenia são como sonhar acordado, já o percebia Joseph Berke, um dos psiquiatras a trabalhar com Ronald Laing, o célebre autor de “o self dividido”. Não por acaso, o propositor e porta-voz da linha de "entendimento da linguagem na loucura” [que repercutia os “nós cegos” da linguagem do grupo social-familiar] consagrada como “antipsiquiatria”. Se tempo e espaço na esquizofrenia são semelhantes a um “sonhar acordado”, são inteligíveis para um bom intérprete de sonhos.

Ronald Laing era um sujeito vital e perspicaz, extremamente hábil no manejo e no entendimento dessa linguagem truncada. Esquizóides [personalidades cindidas que não necessariamente atravessaram um surto psicótico] reconheceram muito da loucura pessoal-ambiental expressa nos diálogos-monólogos de seus livros, a partir de O Self Dividido. Profissionais que procuravam uma leitura mais percuciente do que aquela oferecida pela psiquiatria de então [seu livro-manifesto foi completado em Tavistock em 1957 e publicado em 1960] também identificaram ali um rico filão hermenêutico. Se pegarmos a descrição da “travessia da loucura” feita a quatro mãos por Mary Barnes [a esquizofrênica] e Joseph Berke [um de seus psiquiatras] sobre o surto e recuperação da primeira, veremos a operacionalização dos insights da rica leitura de Laing & Cia, em Kingsley Hall. Morton Schatzman, por mim citado no capítulo anterior deste ensaio, também passou por lá, além de Noel Cobb, psicólogo de formação junguiano-hillmaniana [Carl Jung/ James Hillman]. O livro de Mary Barnes, “Viagem Através da Loucura” é um texto bastante acessível e descritivamente rico do que significa “a carreira” de um esquizofrênico. Uso o termo segundo o sutil entendimento que o próprio Joseph Berke tem da vivência de Mary. A esquizofrenia seria uma “carreira” que envolveria dois sujeitos: um paciente e um psiquiatra [ não há designação sem um designador], carreira esta que se inicia “com o encorajamento do grupo familiar mais próximo do indivíduo”. Essa seria uma leitura inter-relacional da linguagem, símbolos e sintomas esquizofrênicos, como expressões de vieses, “nós cegos comunicacionais” [Double binds, na feliz expressão de Gregory Bateson, costumeiramente traduzido como “duplo vínculo”, no sentido da ambivalência/ ambiguidade do mesmo, do tipo: "vá/ não vá"; ao double bind preferi chamar "nó cego comunicacional"] e cisões grupais na educação deste sujeito fraturado.

Quem quer que tenha dificuldade para conceber imaginalmente o que seja uma atmosfera sombrio-numinosa [onde presenças sobre-humanas/ inumanas parecem emoldurar um ambiente intrinsecamente sombrio] já tem neste sonho de Emannuel Bresson uma de suas expressões mais singelas e eloquentes. 

Aliás, frise-se que neste sonho temos a inumanização/desumanização do próprio sonhador que se percebe como quadrúpede-fera enquanto sonha. Uma metamorfose animal. Uma variante do tema da licantropia, que revela a presença de fundo de um tipo estranho de objeto interno [ou arquétipo] que eu considero apropriado chamar de objeto-amálgama, justamente por sua característica de fundir duas naturezas, ou de apresentar uma transição de uma natureza à outra. Numa leitura mais “narciseana” do que edipiana do Mito de Édipo, a pergunta da Esfinge representaria, justamente, o desafio interno representado pelo objeto-amálgama. Se alguns quiserem ver nesse sutil objeto meramente “o casal primal confluído” [a cena primária, o coito dos pais], eu diria que esta é, tão somente, uma das claves de leitura. Quando a Esfinge pergunta sobre aquele que anda sobre quatro, dois ou três pés [cifra: apoios, “patas”], com sua aparência híbrida [teriomórfica: humano-animal], nada mais está fazendo do que propondo um desafio análogo àquele ao qual “sucumbiu” o pequeno e cindido Emannuel, no sonho citado [e para além-aquém sonho]. As aspas se devem ao fato dele ter, depois, se reerguido [ficou sobre as duas pernas, mais adiante...].











Marcelo Novaes







Bibliografia sugerida:



Barnes, Mary &; Berke, Joseph. (1982). Viagem através da loucura. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

Bateson, Gregory. (1986). Mente e Natureza. Rio de janeiro: Francisco Alves.
Bateson, Gregory. (1996). Metadiálogos. Lisboa: Gradiva.

Bresson, Emannuel. (1993). O Menino que Perdeu sua Morte. São Paulo: Martins Fontes.

Laing, Ronald D. (1978). A política da experiência: a ave do paraíso. Trad. Áurea B. Weissenberg. Petrópolis: Vozes. 2ª edição.

Laing, Ronald D. (1982). Fatos da vida . Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Laing, Ronald D. (1977). Laços.Trad. Mário Pontes. Petrópolis: Vozes. 2ª edição.

Laing, Ronald D. (1991). O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura (The divided self). Traduçäo de Aurea Brito Weissenberg. Petrópolis: Vozes. 6ª ediçäo

Laing, Ronald D.(1989). O eu e os outros: o relacionamento interpessoal (Self and others). Trad. Aurea Brito Weissenberg. Petrópolis: Vozes. 7ª ediçäo

Laing, Ronald D.(1972). Percepção interpessoal (Interpersonal perception). Rio de Janeiro: Ed. Eldorado.

Laing, Ronald D. Política da Família (A). (1983). São Paulo: Martins Fontes. 2ª edição.

Laing, Ronald D. Politics of experience (The). (1979). New York: Ballantine. 11ª ed.

Laing, Ronald David e Caretti, Vincenzo (1982). Sobre loucos e sãos: entrevista a Vincenzo Caretti . São Paulo: Brasiliense. 2ª edição.

Laing, Ronald David e Cooper, David Graham. (1982). Razão e violência: uma década da filosofia de Sartre; 1950-1960 (Reason & violence: a decade of Sartre's philosophy, 1950-1960). Petropolis: Vozes. 2ª edição.

Laing, Ronald D. & Esterson, Aaron. (1980). Sanity, madness, and the family. Middlesex: Penguin Books.