"É tão impossível exercer liberdade num mundo irreal quanto saltar enquanto se está caindo." Colin Wilson, O Outsider.
A partir do que expus no capítulo anterior, resolvi fazer algo um tanto diferente. Vou repetir o capítulo, dizendo as mesmas coisas a partir de um vértice um tanto distinto. O vértice é o seguinte: partirei das ideias do psicanalista inglês Donald Winnicott apresentando, na perspectiva do mesmo, como surge a noção do real para o bebê. Em outros termos: como o bebê alcança a noção da realidade de si e do mundo. Este é exatamente o assunto que discuti no capítulo anterior, mas, dada a sua importância, achei interessante a ideia de “repeti-lo em outros termos”. E, a princípio, tais termos serão “winnicottianos”. E mais: encaminharei a discussão para incluir a importante assertiva de Colin Wilson no seu clássico: The Outsider.
O bebê tem necessidades; seus instintos ou impulsos [pulsões] encaminham esse bebê ao mundo externo, em direção a um “algo” que ele procura: calor, aconchego, leite, diminuição da luz ambiente, massagem abdominal, mudar de posição para vomitar ou evacuar, etc, etc. Quando os vetores do que ele “sente que precisa” com o que “o ambiente oferece a ele” convergem, temos o sentido de “realidade” para o bebê. Realidade é casamento da pulsão [necessidade, desejo] com o suporte ambiental [resposta, apoio, acolhimento, “holding”]. Quando a criança encontra essa justaposição, a princípio fantasia que “seu desejo produziu tal realidade” [em suma: “porque ela desejou ou precisou, o objeto surgiu”]. Tal superposição [acompanhada dessa suposição instintiva de “criação do mundo”] é uma fase necessária de encontro bebê-ambiente. Do contrário, haveria fracasso ambiental, e o bebê não poderia crer em “nenhuma realidade possível”. Um grande vazio existencial, um vazio ontológico [um vazio referente ao sentimento de si e ao sentimento de realidade do mundo, ambos imbricados] se instalaria no bebê, produzindo angústias muito arcaicas neste indivíduo. [Lembremo-nos que o sujeito-bebê se encontra nos primórdios de seu desenvolvimento]. Tais angústias, de tão arcaicas, primitivas, foram chamadas por Winnicott de “medos impensáveis”. Um desses medos é de não estar no corpo [já o delineamos, brevemente, em nosso capítulo anterior]. Outro desses medos arcaicos refere-se à sensação de uma queda sem término, uma perda absoluta de chão ontológico [de base ontológica para a existência de si e/ou das coisas]: uma “queda livre infinita”. Fica-nos, portanto, claro [sobretudo a partir da explanação do capítulo anterior] que esses são medos ligados ao sentimento de desrealização do mundo, ou de irrealidade do mundo. Sim, e com provável sentimento concomitante de “despersonalização do eu". Então, nessa procura inicial dos desejos/necessidades do bebê relacionados ao suporte ambiental, pode advir uma angustiosa sensação [bastante primitiva, e “inominável, de tão primitiva” – por isso mesmo, “impensável” – por ser uma “angústia dos primórdios, pré-pensamento"] de “não haver bebê” e/ou de “não haver ambiente”. Essa é, em termos bem sumarizados a dupla face do sentimento de (ir)realidade do mundo e do eu. Se o bebê estende a mão e encontra algo, sua mão e esse algo existem. Se ele estende e nada pode alcançar, “mão e algo deixam de existir”. A esse propósito, ler meu poema "Mão”.
Mão
Eu Criei o Mundo com Minha
Mão, quando Lá Fora achei o que
Buscava. Não havia Hiato, não havia
Vão. Nenhum Vazio Ontológico. Eu
Era e Me Bastava.
A Voz de meu Pai, Trovejando, era
só Meteoritos no meu Estômago, e não
me Deixava(m) Aflito. Aprendi, desde
que me Descobri Criando, a traçar
Metas; a Fazer Valer Meus Bons
Objetivos.
O Mundo tem Sujeitos e Objetos, e Seus
Predicados. Há que se Distingui-los em Co
-ordenadas de Tempo, Espaço, Frustração,
Adiamento e Atraso. Há que se Distinguir
a Si do Outro, sem Defletir a Agressão,
nem Demolir a Liberdade de Alguém
em nos Dizer seu
Não.
Na Rejeição não há Fracasso. E sim
na Falha de nos Sabermos Distintos
da Escolha do Outro. Estendi minha
Mão e Criei o Mundo, que Achei Lá
Fora. Mas,também, Meu
Inimigo.
Marcelo Novaes
Pois bem: enquanto o bebê vive essa descoberta do mundo como prolongamento [e contraparte] de suas necessidades e buscas, ele pensa que cria o mundo! [o poema deixa esse sentimento bem claro]. Essa “cosmogonia autóctone”, pessoal, objetiva e primitiva é uma sensação de que “o mundo foi feito por mim”, por parte do bebê que se descobre [e ao mundo, ao mesmo tempo]. James Grotstein dedica bastante atenção a este tema, deixando claro como esse estágio é um prelúdio obrigatório e passo necessário em direção ao sentimento de alteridade: eu-outro. Não há construção desse sentimento quando se sente que o mundo e/ou o eu não são “reais” [nesse sentido dado: “algo que possa ser alcançado”]. Quando não há este algo, metas são solapadas, melhor dizendo: de todo inviabilizadas, porque não há solo algum para que essas metas possam existir [mal há “a realidade do mundo”, o que dirá qualquer objetivo ou valor possível nele]. Ideias e Ideais são desdobramentos dessa “realidade relativa” do mundo. Quando há “algo” a “ser encontrado pela mão” e “insuficiências em relação a esse algo” [limitações ou lapsos nesse algo], ambos, Ideais ou Ideias, podem preencher essas insuficiências. Isso é importantíssimo ressaltar: há também a importância da Ausência na vivência daquele cuja mão “pôde alcançar um Algo” [não sempre completo, e por vezes não pôde, mas progressivamente ciente de sua “existência potencial”, na medida em que avança no tempo de seu desenvolvimento]. Mesmo esses lapsos ou lacunas eventuais podem estar prenhes de esperança, ou até de “confiança” numa criação posterior [ou seja: num encontro posterior entre a mão e seu objeto]. Por isso, além da realidade palpável, também existe a “realidade da dimensão ideal” para o sujeito engajado “a preencher tais vazios” ao longo de sua vida. Por isso a noção de Ideia é algo também substancial [nada de “irreal”, “evanescente” ou “fútil”, como muitas vezes se pretende; ao contrário, algo “concebível, e plenamente palpável na medida mesma do concebimento de sua possibilidade/ plausibilidade”].
Sim. A Ideia é algo substancial no sentido platônico do termo: um “Algo que pré-existe e que pode preencher a Busca Criativa” [ou o “Esforço de Alcançar este Algo”]. Também o cerne das noções de Ideia Platônica ou Arquétipo Junguiano [repare-se que a noção já existia em Schiller, em Goethe e no Romantismo/Idealismo Alemão] inclui o que estou chamando de “possível preenchimento de uma falta”. A noção dessa “possibilidade de preenchimento [da falta]” em si mesma é platônica e arquetípica. Conceber um elemento-ideal que esteja além do dado experimentado, e que possa aperfeiçoá-lo [por exemplo: “um maior quantum de justiça à injustiça experimentada”] é, conceitualmente falando, um raciocínio “platônico” ou “arquetípico”. Romântico também, no sentido do ideário ético-estético do Romantismo/Idealismo alemão. Além disso, essa concepção de acreditar que se possa fazer uma “ponte entre aqui e lá” [ou seja, entre o que se vive, o que se vê, o que se experimenta com o que se “concebe-além-do-visto-e-vivido”, acrescentando “substância valorativa” ao mundo vivido] é, fundamentalmente, uma “concepção religiosa” do mundo: com ou sem “Religião Formal”. Com ou sem clericalismos. É uma noção pré-clerical, pré-institucional. Implica na noção “que se traz algo do plano da ideia para o mundo vivo”, na corporificação [relativa] desta Ideia-Valor. Ou na “Encarnação do Verbo”, manifestação-limite dessa mesma noção, para enfatizarmos a grande declaração neoplatônica de abertura do Evangelho de São João. Daí quando se atribui a Jung uma “psicologia religiosa”, se está certo nesse sentido específico. É platônica, sim, é religiosa e também segue a mesma linha de reflexão que formatou o Romantismo-Idealismo Alemão de Goethe, Schiller, Fichte, Shelling. Esse “veio” [ou linha de reflexão] é, em última instância, platônico/neoplatônico. Em algum ponto esse “veio” pode encontrar o Cristianismo [pois que há muitos teólogos cristão-neoplatônicos], como pode se dar paralelamente ao Cristianismo, “descobrindo” valores laterais ou correlatos Àquele, até certa medida.
De qualquer maneira, trata-se de um modo de conceber o trajeto humano que privilegia o “significado” para além do fato. Inclusive, aproveitando os fatos para extrair deles os melhores significados e ideais decorrentes, até de suas insuficiências: é o “amor fati” de Jung [expressão já utilizada por Nietzsche, com outra coloração: como reconhecimento-validação do valor do próprio percurso, de sua “razão necessária”, assim outorgada/descoberta pela própria Vontade], como também o “tudo concorre para a Salvação dos que buscam a Deus” do Cristianismo. Isso quer dizer o que? Que mesmo “a vida de limitações e pecados” é “justificada” [encontra seu lugar ou sua razão no Plano de Deus], quando se procura os Valores Mais Altos [num caso, a Verdade Cristã; noutro, o significado e potencial do próprio percurso com seus percalços], porque os erros ajudaram a evidenciar a Supremacia dessa Verdade, e o homem se Rende e se Converte [Metanoia, Transformação, na perspectiva cristã; “amor fati”, enantiodromia e individuação, no caso dos construtos junguianos]. Então, também o erro [ou a “insuficiência ideal dos fatos” ou “a insuficiência dos fatos perante o Ideal”] pode conduzir à verdade [à maior porção da verdade abarcável pelo indivíduo, sobretudo à verdade sobre si mesmo], quando se tem honestidade de busca, autocrítica, humildade psíquica e boa vontade.
Esse raciocínio é platônico em sua raiz. Alcança-se o ideal, dialeticamente, reconhecendo como o fato é esse mesmo ideal refratado, ou degradado. Com um acréscimo: procuremos aperfeiçoar os dados do mundo/ no mundo [que são como que Imagens Caídas ou Refratadas do Mundo Ideal], enquanto aspiramos e somos capazes de conceber valores progressivamente mais puros. Uma coisa não exclui a outra. Isso é Filosofia e Teologia de boa cepa, seja Cristã, seja Platônica. E não há nada de “evasivo” nisso, nem de “política de cruzar os braços”, muito pelo contrário, independente da atitude histórica de um ou outro representante dessas Tradições. Quando um belo ideário não encontra muitos capazes de vivê-lo, não se suspeita, necessariamente, do ideário. Porque haveria sempre outro tanto de exemplos de homens/mulheres capazes de colocá-lo em prática.
No entanto, ao dizer isso, não valido a "imagem construída e institucionalizada" de Jung como "homem individuado" [não, Jung não é Cristo, nem exemplo de "totalidade" ou "inteireza"] e sua caricata deificação [não, Jung não atingiu nada semelhante ao "máximo do humano"], tal como apresentada no Livro Vermelho. Jung critica a "opção fácil" de Albert Schweitzer de ir à África, como médico, abdicando de seus inúmeros talentos como músico, teólogo, filósofo, por imaginar que ali, naquele continente, os negros o "cultuariam", viabilizando e facilitando-lhe "a cômoda fuga da Europa e dos deveres europeus". Essa crítica a Albert Schweitzer revela a visão de mundo, ou Weltanschauung, de Jung, não de Albert.
De forma igualmente unilateral, Jung só concebe a "enantiodromia" [o momentum onde as inclinações e ações da consciência se revertem em seu oposto, por uma tomada súbita desta consciência em relação a esses mesmos valores e prioridades, tais como iluminados e compensados pelo inconsciente] nos seus próprios termos: conquistas burguesas médias [cumprimento das expectativas sociais de sucesso burguês] seguidas de recolhimento e transvaloração das mesmas, como preparação para a morte. Roteiro estreito, este. Há pessoas que vivenciam a reversão na escala de valores antes dos trinta anos, e antes das tais realizações sociais: nada de constituir família, nada de "se posicionar no mundo burguês" para, depois, relativizá-lo. Nada de enantiodromia esperneante ou agônica. A enantiodromia que Jung desconhece [e cuja existência parece até "incapaz de conceber"] é aquela de quem "por ter visto muito bem a insuficiência de certos valores propostos, larga mão dos mesmos [e mesmo de "caçá-los"] e adota outros valores, que soam como renúncia àqueles socialmente sancionados, e que ele, Jung, esperaria desejáveis [os únicos desejáveis, ouso dizer] na primeira etapa da vida". Jung não acredita nos renunciantes, não pode entender a opção de Buda ou dos Sannyasins. Não acredita nos nômades que não precisam estar "bem enraizados na cultura de seu tempo" para lidarem com o inconsciente. Não parece entender os missionários sem família que viajam pelo mundo: médicos sem fronteiras não-casados, professores de periferias sem família, gente do bem e que se voluntariza a agir em causas sociais, sem "maquiagens". Jung crê primeiro no cultivo da maquiagem, no esmero da maquiagem [a persona bem sucedida] para depois, quem sabe, e "agonicamente", o sujeito abdicar de tudo isso.
Personagens tais como Ellen Gruwell, a personagem real do filme "Escritores da Liberdade" [Freedom Writers], que sacrificam família, casamento [seu marido não consegue entendê-la], em nome da educação de jovens de periferia, e que o fazem "sem esperneios" ou "crises de identidade", com convicção, bem cientes do que perdem e acolhem, antes dos quarenta anos, são um mistério para Jung. Simplesmente pelo fato de tal altruísmo não caber "em sua totalidade". O mesmo poder-se-ia dizer de "nômades" como o personagem desempenhado por Adrien Brody, no filme Detachment ["O Substituto"], o professor substituto por opção, que encara barras pesadas com adolescentes infratores, sem criar vínculos familiares, e perdoando uma infância difícil, sem "atuá-la" ou "reproduzir seus danos" na vida adulta. Pelo contrário: reparando-as sem ter uma família! Essas coisas existem e acontecem, nos filmes como na vida real, mas Jung não pode concebê-las por não participarem de seu "código burguês do que seja inteireza". Todos os exemplos por mim citados são mais íntegros do que Jung jamais pôde ser em sua vida e, em sua perspectiva tacanha, seriam vistos como "mutilações" ou "restrições à vida plena". Essa é mais uma de minhas críticas, bastante fundamentada, à visão de mundo, Weltanschauung ou "ideologia junguiana", subjacente à sua visão clínica do "desenvolvimento típico" ou "sadio". O atípico pode ser mais íntegro e mais são.
Considero o culto a Jung, que se deixa vazar por todos os lados do Livro Vermelho, lido como "Códice" [é só atentar para os comentários de Cary Baines a passagens dos Livros Negros, que lhe servem de esboço, aos comentários de Sonu Shamdasani às correções de Jung a esses mesmos esboços, etc, etc], como "a grande inflação junguiana". E um equívoco epistêmico. Explico: seu processo de "confecção do mito pessoal" [e do mito de nosso tempo, porque ele ousa "esboçar o mito de seu tempo", qual dublê de profeta!] se dá sem diferenciação suficiente da valência/status de cada imago apresentada ali. Sim, porque ele aglutina figuras de status ontológico distintos: imagem de paciente falecida, voz de paciente viva, figura imaginal mítica, todas bastante distintas, como se todo este material pudesse fazer parte de um continuum lido como mensagem em progressão, num processo artificioso de colagem, que lineariza todas essas diferentes instâncias como a "voz da alma" ou "voz da anima". Pois bem, tudo isso aporta suficiente carga de contrafação e autoconveniência que me afasta do autor. Por isso, como "relator de um percurso dialético" [um descritor, não um auto-deificado exemplo], Platão é muito mais honesto do que Jung. E todos os personagens por mim citados acima são mais dignos, inteiros, íntegros e altruístas do que o Pai da Psicologia Analítica.
Sim. A Ideia é algo substancial no sentido platônico do termo: um “Algo que pré-existe e que pode preencher a Busca Criativa” [ou o “Esforço de Alcançar este Algo”]. Também o cerne das noções de Ideia Platônica ou Arquétipo Junguiano [repare-se que a noção já existia em Schiller, em Goethe e no Romantismo/Idealismo Alemão] inclui o que estou chamando de “possível preenchimento de uma falta”. A noção dessa “possibilidade de preenchimento [da falta]” em si mesma é platônica e arquetípica. Conceber um elemento-ideal que esteja além do dado experimentado, e que possa aperfeiçoá-lo [por exemplo: “um maior quantum de justiça à injustiça experimentada”] é, conceitualmente falando, um raciocínio “platônico” ou “arquetípico”. Romântico também, no sentido do ideário ético-estético do Romantismo/Idealismo alemão. Além disso, essa concepção de acreditar que se possa fazer uma “ponte entre aqui e lá” [ou seja, entre o que se vive, o que se vê, o que se experimenta com o que se “concebe-além-do-visto-e-vivido”, acrescentando “substância valorativa” ao mundo vivido] é, fundamentalmente, uma “concepção religiosa” do mundo: com ou sem “Religião Formal”. Com ou sem clericalismos. É uma noção pré-clerical, pré-institucional. Implica na noção “que se traz algo do plano da ideia para o mundo vivo”, na corporificação [relativa] desta Ideia-Valor. Ou na “Encarnação do Verbo”, manifestação-limite dessa mesma noção, para enfatizarmos a grande declaração neoplatônica de abertura do Evangelho de São João. Daí quando se atribui a Jung uma “psicologia religiosa”, se está certo nesse sentido específico. É platônica, sim, é religiosa e também segue a mesma linha de reflexão que formatou o Romantismo-Idealismo Alemão de Goethe, Schiller, Fichte, Shelling. Esse “veio” [ou linha de reflexão] é, em última instância, platônico/neoplatônico. Em algum ponto esse “veio” pode encontrar o Cristianismo [pois que há muitos teólogos cristão-neoplatônicos], como pode se dar paralelamente ao Cristianismo, “descobrindo” valores laterais ou correlatos Àquele, até certa medida.
De qualquer maneira, trata-se de um modo de conceber o trajeto humano que privilegia o “significado” para além do fato. Inclusive, aproveitando os fatos para extrair deles os melhores significados e ideais decorrentes, até de suas insuficiências: é o “amor fati” de Jung [expressão já utilizada por Nietzsche, com outra coloração: como reconhecimento-validação do valor do próprio percurso, de sua “razão necessária”, assim outorgada/descoberta pela própria Vontade], como também o “tudo concorre para a Salvação dos que buscam a Deus” do Cristianismo. Isso quer dizer o que? Que mesmo “a vida de limitações e pecados” é “justificada” [encontra seu lugar ou sua razão no Plano de Deus], quando se procura os Valores Mais Altos [num caso, a Verdade Cristã; noutro, o significado e potencial do próprio percurso com seus percalços], porque os erros ajudaram a evidenciar a Supremacia dessa Verdade, e o homem se Rende e se Converte [Metanoia, Transformação, na perspectiva cristã; “amor fati”, enantiodromia e individuação, no caso dos construtos junguianos]. Então, também o erro [ou a “insuficiência ideal dos fatos” ou “a insuficiência dos fatos perante o Ideal”] pode conduzir à verdade [à maior porção da verdade abarcável pelo indivíduo, sobretudo à verdade sobre si mesmo], quando se tem honestidade de busca, autocrítica, humildade psíquica e boa vontade.
Esse raciocínio é platônico em sua raiz. Alcança-se o ideal, dialeticamente, reconhecendo como o fato é esse mesmo ideal refratado, ou degradado. Com um acréscimo: procuremos aperfeiçoar os dados do mundo/ no mundo [que são como que Imagens Caídas ou Refratadas do Mundo Ideal], enquanto aspiramos e somos capazes de conceber valores progressivamente mais puros. Uma coisa não exclui a outra. Isso é Filosofia e Teologia de boa cepa, seja Cristã, seja Platônica. E não há nada de “evasivo” nisso, nem de “política de cruzar os braços”, muito pelo contrário, independente da atitude histórica de um ou outro representante dessas Tradições. Quando um belo ideário não encontra muitos capazes de vivê-lo, não se suspeita, necessariamente, do ideário. Porque haveria sempre outro tanto de exemplos de homens/mulheres capazes de colocá-lo em prática.
No entanto, ao dizer isso, não valido a "imagem construída e institucionalizada" de Jung como "homem individuado" [não, Jung não é Cristo, nem exemplo de "totalidade" ou "inteireza"] e sua caricata deificação [não, Jung não atingiu nada semelhante ao "máximo do humano"], tal como apresentada no Livro Vermelho. Jung critica a "opção fácil" de Albert Schweitzer de ir à África, como médico, abdicando de seus inúmeros talentos como músico, teólogo, filósofo, por imaginar que ali, naquele continente, os negros o "cultuariam", viabilizando e facilitando-lhe "a cômoda fuga da Europa e dos deveres europeus". Essa crítica a Albert Schweitzer revela a visão de mundo, ou Weltanschauung, de Jung, não de Albert.
De forma igualmente unilateral, Jung só concebe a "enantiodromia" [o momentum onde as inclinações e ações da consciência se revertem em seu oposto, por uma tomada súbita desta consciência em relação a esses mesmos valores e prioridades, tais como iluminados e compensados pelo inconsciente] nos seus próprios termos: conquistas burguesas médias [cumprimento das expectativas sociais de sucesso burguês] seguidas de recolhimento e transvaloração das mesmas, como preparação para a morte. Roteiro estreito, este. Há pessoas que vivenciam a reversão na escala de valores antes dos trinta anos, e antes das tais realizações sociais: nada de constituir família, nada de "se posicionar no mundo burguês" para, depois, relativizá-lo. Nada de enantiodromia esperneante ou agônica. A enantiodromia que Jung desconhece [e cuja existência parece até "incapaz de conceber"] é aquela de quem "por ter visto muito bem a insuficiência de certos valores propostos, larga mão dos mesmos [e mesmo de "caçá-los"] e adota outros valores, que soam como renúncia àqueles socialmente sancionados, e que ele, Jung, esperaria desejáveis [os únicos desejáveis, ouso dizer] na primeira etapa da vida". Jung não acredita nos renunciantes, não pode entender a opção de Buda ou dos Sannyasins. Não acredita nos nômades que não precisam estar "bem enraizados na cultura de seu tempo" para lidarem com o inconsciente. Não parece entender os missionários sem família que viajam pelo mundo: médicos sem fronteiras não-casados, professores de periferias sem família, gente do bem e que se voluntariza a agir em causas sociais, sem "maquiagens". Jung crê primeiro no cultivo da maquiagem, no esmero da maquiagem [a persona bem sucedida] para depois, quem sabe, e "agonicamente", o sujeito abdicar de tudo isso.
Personagens tais como Ellen Gruwell, a personagem real do filme "Escritores da Liberdade" [Freedom Writers], que sacrificam família, casamento [seu marido não consegue entendê-la], em nome da educação de jovens de periferia, e que o fazem "sem esperneios" ou "crises de identidade", com convicção, bem cientes do que perdem e acolhem, antes dos quarenta anos, são um mistério para Jung. Simplesmente pelo fato de tal altruísmo não caber "em sua totalidade". O mesmo poder-se-ia dizer de "nômades" como o personagem desempenhado por Adrien Brody, no filme Detachment ["O Substituto"], o professor substituto por opção, que encara barras pesadas com adolescentes infratores, sem criar vínculos familiares, e perdoando uma infância difícil, sem "atuá-la" ou "reproduzir seus danos" na vida adulta. Pelo contrário: reparando-as sem ter uma família! Essas coisas existem e acontecem, nos filmes como na vida real, mas Jung não pode concebê-las por não participarem de seu "código burguês do que seja inteireza". Todos os exemplos por mim citados são mais íntegros do que Jung jamais pôde ser em sua vida e, em sua perspectiva tacanha, seriam vistos como "mutilações" ou "restrições à vida plena". Essa é mais uma de minhas críticas, bastante fundamentada, à visão de mundo, Weltanschauung ou "ideologia junguiana", subjacente à sua visão clínica do "desenvolvimento típico" ou "sadio". O atípico pode ser mais íntegro e mais são.
Considero o culto a Jung, que se deixa vazar por todos os lados do Livro Vermelho, lido como "Códice" [é só atentar para os comentários de Cary Baines a passagens dos Livros Negros, que lhe servem de esboço, aos comentários de Sonu Shamdasani às correções de Jung a esses mesmos esboços, etc, etc], como "a grande inflação junguiana". E um equívoco epistêmico. Explico: seu processo de "confecção do mito pessoal" [e do mito de nosso tempo, porque ele ousa "esboçar o mito de seu tempo", qual dublê de profeta!] se dá sem diferenciação suficiente da valência/status de cada imago apresentada ali. Sim, porque ele aglutina figuras de status ontológico distintos: imagem de paciente falecida, voz de paciente viva, figura imaginal mítica, todas bastante distintas, como se todo este material pudesse fazer parte de um continuum lido como mensagem em progressão, num processo artificioso de colagem, que lineariza todas essas diferentes instâncias como a "voz da alma" ou "voz da anima". Pois bem, tudo isso aporta suficiente carga de contrafação e autoconveniência que me afasta do autor. Por isso, como "relator de um percurso dialético" [um descritor, não um auto-deificado exemplo], Platão é muito mais honesto do que Jung. E todos os personagens por mim citados acima são mais dignos, inteiros, íntegros e altruístas do que o Pai da Psicologia Analítica.
Rubem Alves postula em seu livro “O que é Religião”, que o cerne da Religião se constitui nos Símbolos da Ausência. Eu poderia transpor sua expressão [certo da anuência dele] para a assertiva de que “a Ambiência Religiosa é constituída pela soma das Ausências Significativas, tidas como Vitais/Sagradas”. Jung postulou para o inconsciente [individual + coletivo] também uma função compensatória. No capítulo anterior, eu nomeei algumas das finalidades/ funções dos sonhos, segundo minhas perspectivas. Essas funções correspondem a algumas das funções do inconsciente, segundo Jung. A “função compensatória do inconsciente” possui estreita afinidade com a dialética platônica: da sombra para a ideia, do insuficiente para o factível que, depois, se revela em substância, na medida mesma de sua “plausibilidade imaginal” e relativa factibilidade material. O fato da ideia ser refratada não lhe tira o status ontológico de ser tão substancial [aliás mais!] do que os fatos materiais, porque os precederiam, ontológica e axiologicamente.
Deixando de lado essas sutilezas filosóficas [boas para discussões acadêmicas] podemos, enfim, ler Platão de uma maneira junguiana [ou Jung de uma maneira platônica], estabelecendo uma ponte entre os dois pensadores. Jolande Jacobi já o fez, em seus próprios termos, em texto citado por mim na sugestão bibliográfica para este capítulo. Convido o leitor a fazer seu julgamento da apreciação que ela faz, clássica e acessível, do modo tipicamente junguiano de abordar as coisas. O meu modo é outro, mas sou democrata e disponibilizo acesso a material comparativo [e confrontatório] às minhas próprias convicções. Meu modo é diverso pelo fato já apontado do que considero serem as "indiferenciações" no lidar com as Imagos por parte de Jung. Aqui, serei um pouco mais didático e pormenorizado na crítica: a) a voz coletiva dos mortos [vide "Os Sete Sermões aos Mortos", como discurso final do Livro Vermelho], b) a voz-imagem de uma pessoa morta com a qual se teve uma relação específica [ex-paciente que lhe apontou a riqueza da cultura egípcia], c) a voz-imagem de uma pessoa viva que se conhece no presente ou com a qual se conviveu [a fala de uma paciente-amante que chama seu trabalho de "arte", e não ciência; provavelmente Mary Moltzer], e d) a voz-imagem de uma figura mítica [Salomé ou qualquer outra], todas essas camadas de informação jamais poderiam ser artificialmente equalizadas, naquilo que apontam ou aportam para o sujeito, a) seja sobre si mesmo, b) sobre resíduos relacionais específicos de seu modo de se portar perante cada uma dessas instâncias [tomadas literal e simbolicamente], bem como c) sobre "valências mítico-sagradas" que podem ser úteis ao auto-desvelamento do sujeito para si e perante si. Jung, indevidamente, mistura essas instâncias.
Um livro inteiro seria pouco para ilustrar os muitos níveis de diferenciação das Imagos que faltam ao Livro Vermelho e que lhe seriam necessários, níveis estes não devidamente operados por Jung, com implicações inevitáveis sobre as seguintes questões: a) O que se "integra em si"; b) O que se contempla, sem integrar, para "aprender sobre si"; c) O que não se modifica, contemplando-se; d) Com o que se dialoga, para que ambos os polos [Imago e Self] se modifiquem um ao outro; e) O que sugere um vetor de mudança ou revisão dialogal relativamente a pessoas concretas, ou com a memória das mesmas; f) A revisão de si mesmo decorrente de todas essas distintas instâncias imaginais; g) Os nomes que as próprias Imagos se atribuem X (versus) os nomes que se escolhe dar a elas, o que Jung operou cuidadosamente, em vários casos, com a minudente ajuda de Toni Wolff. Neste último caso, Jung decidiu como batizar certas Imagos a posteriori, com ajuda de sua erudição, o que permite uma sobrevaloração de sua "cor", por escolha [ou decisão] nominativa. A confusão é grave.
Fazendo uma analogia espírita, seria o mesmo que não saber distinguir "as classes de espíritos com os quais se dialoga". Tomar, por exemplo, a fala de uma Pomba-Gira zombeteira como porta-voz do que de "mais alto possa existir". O mesmo se dá com a Cosmogonia [ou psicocosmogonia, uma vez que há "a interiorização da Cosmogonia na psique"] no Livro Vermelho: O Alto e o Baixo, o Pessoal e o Suprapessoal, o relacional e mítico, o inter-subjetivo e o "Objetivo", o ancestral e o "atemporal" [coisas muitíssimo distintas] são misturados não por uma "riqueza cosmogônica inequívoca que uniria tudo isso" (sic), não pela "tessitura hábil do Unus Mundus", mas pela pressa e precipitação em não distinguir as coisas muito bem antes de uni-las. Jung, como aprendiz de alquimista, deveria ter sido muito mais criterioso nesse aspecto fundamental. Essa é outra crítica que faço ao "mestre" a partir de fundamentos próprios, sem tomar emprestados outros que se encontram de outros críticos a este "Tratado de Auto-Deificação", o tal Liber Novus ou Livro Vermelho.
Deixando de lado essas sutilezas filosóficas [boas para discussões acadêmicas] podemos, enfim, ler Platão de uma maneira junguiana [ou Jung de uma maneira platônica], estabelecendo uma ponte entre os dois pensadores. Jolande Jacobi já o fez, em seus próprios termos, em texto citado por mim na sugestão bibliográfica para este capítulo. Convido o leitor a fazer seu julgamento da apreciação que ela faz, clássica e acessível, do modo tipicamente junguiano de abordar as coisas. O meu modo é outro, mas sou democrata e disponibilizo acesso a material comparativo [e confrontatório] às minhas próprias convicções. Meu modo é diverso pelo fato já apontado do que considero serem as "indiferenciações" no lidar com as Imagos por parte de Jung. Aqui, serei um pouco mais didático e pormenorizado na crítica: a) a voz coletiva dos mortos [vide "Os Sete Sermões aos Mortos", como discurso final do Livro Vermelho], b) a voz-imagem de uma pessoa morta com a qual se teve uma relação específica [ex-paciente que lhe apontou a riqueza da cultura egípcia], c) a voz-imagem de uma pessoa viva que se conhece no presente ou com a qual se conviveu [a fala de uma paciente-amante que chama seu trabalho de "arte", e não ciência; provavelmente Mary Moltzer], e d) a voz-imagem de uma figura mítica [Salomé ou qualquer outra], todas essas camadas de informação jamais poderiam ser artificialmente equalizadas, naquilo que apontam ou aportam para o sujeito, a) seja sobre si mesmo, b) sobre resíduos relacionais específicos de seu modo de se portar perante cada uma dessas instâncias [tomadas literal e simbolicamente], bem como c) sobre "valências mítico-sagradas" que podem ser úteis ao auto-desvelamento do sujeito para si e perante si. Jung, indevidamente, mistura essas instâncias.
Um livro inteiro seria pouco para ilustrar os muitos níveis de diferenciação das Imagos que faltam ao Livro Vermelho e que lhe seriam necessários, níveis estes não devidamente operados por Jung, com implicações inevitáveis sobre as seguintes questões: a) O que se "integra em si"; b) O que se contempla, sem integrar, para "aprender sobre si"; c) O que não se modifica, contemplando-se; d) Com o que se dialoga, para que ambos os polos [Imago e Self] se modifiquem um ao outro; e) O que sugere um vetor de mudança ou revisão dialogal relativamente a pessoas concretas, ou com a memória das mesmas; f) A revisão de si mesmo decorrente de todas essas distintas instâncias imaginais; g) Os nomes que as próprias Imagos se atribuem X (versus) os nomes que se escolhe dar a elas, o que Jung operou cuidadosamente, em vários casos, com a minudente ajuda de Toni Wolff. Neste último caso, Jung decidiu como batizar certas Imagos a posteriori, com ajuda de sua erudição, o que permite uma sobrevaloração de sua "cor", por escolha [ou decisão] nominativa. A confusão é grave.
Fazendo uma analogia espírita, seria o mesmo que não saber distinguir "as classes de espíritos com os quais se dialoga". Tomar, por exemplo, a fala de uma Pomba-Gira zombeteira como porta-voz do que de "mais alto possa existir". O mesmo se dá com a Cosmogonia [ou psicocosmogonia, uma vez que há "a interiorização da Cosmogonia na psique"] no Livro Vermelho: O Alto e o Baixo, o Pessoal e o Suprapessoal, o relacional e mítico, o inter-subjetivo e o "Objetivo", o ancestral e o "atemporal" [coisas muitíssimo distintas] são misturados não por uma "riqueza cosmogônica inequívoca que uniria tudo isso" (sic), não pela "tessitura hábil do Unus Mundus", mas pela pressa e precipitação em não distinguir as coisas muito bem antes de uni-las. Jung, como aprendiz de alquimista, deveria ter sido muito mais criterioso nesse aspecto fundamental. Essa é outra crítica que faço ao "mestre" a partir de fundamentos próprios, sem tomar emprestados outros que se encontram de outros críticos a este "Tratado de Auto-Deificação", o tal Liber Novus ou Livro Vermelho.
Deixando um pouco o Pai Fundador de lado, eu, de minha parte, chamaria a essas Ausências Significativas postuladas por Rubem Alves, de “Vazios Eloquentes que Pedem por Preenchimento”. Parte do mundo arquetípico e de seu valor compensatório se dá por esse mecanismo, na minha própria formulação de sua gênese e valência para a psique. Proto-percepções, protofantasias, nano-percepções subliminares postas, pelo inconsciente, a serviço das indagações existências/vitais ao consciente indagante e ferido, surgem como Imagos, Presenças, Moldes Palpáveis dessas Ausências, delineando-lhes os halos, as Formas, o Fundo. O Refluxo da Libido que não encontra objeto no mundo [“a mão que não alcança o mundo”] encontra este outro “reino imaginal de presenças”. Assim defino uma das vias de alcance ao arquetípico, delineando, ao mesmo tempo, porque essa via é mais factível aos feridos narcísicos do que aos edipianos, que têm o mundo exterior bem catexizado ou investido por sua libido [desejo, interesse, gratificação, élan]. Vazios pedem por preenchimentos, digo eu. “Pensamentos pedem por um pensador”, diria Wilfred Bion. Platônico, este Bion.
Voltemos, então à “criança que estende a mão ao mundo”. O encontro da mão [ou da “boca que busca o mamilo da mãe”] com o ambiente suportivo [seio materno, acolhedor e nutritivo: objeto-afeto] culmina num “senso de realidade do mundo” [culmina na constatação do “sim, o mundo existe”; e mais: no “sim, eu posso criar no mundo, aportar idéias, ideais, valores, objetos ao mundo”] e de realidade do eu [“sim, o mundo existe e pode existir para mim”; “eu posso existir nele”; “o mundo é habitável e respirável”]. Ao contrário da pergunta edipiana que intenta localizar o lugar do desejo, e se localizar perante o desejo, para além da exclusão imposta pelas castrações, ou assimilando-as, eis o cerne da pergunta narcísica: “o mundo é um local viável?!”. “Dá pra se viver no mundo?!” “O mundo é respirável?!”. As questões de frustração Edípica [“ele tomou o que era meu”] são posteriores a esta e pressupõem que se tenha dado uma resposta positiva a estas indagações mais arcaicas e prementes. Implica em se ter respondido: “sim, o mundo existe, mas fulaninho pegou o que era meu por direito”.
As questões narcísicas são mais fundamentais, mais básicas e mais sérias. Também porque dizem mais da Ontologia do que do Desejo [da possibilidade de “se sentir sendo”, antes de se sentir “roubado ou tripudiado”, ou de se invejar o irmãozinho que ganha carinho ou o papai que come a mamãe]. As questões narcísicas são “fundantes” e fundamentais. E não nos esqueçamos que a Ontologia abrange o Ser, o Uno e o Devir, podendo abarcar questionamentos extremamente sutis, em dependência do "horizonte de indagação" do ferido.
Quando se pensa em Narcisismo, toca-se, obrigatoriamente, em questões de Ontologia, de Filosofia, de Epistemologia [“o que pode ser conhecido?!”] num sentido bem básico, arcaico e, como disse acima, “religioso” desses termos. Um ferido narcísico que se trabalhe [que trabalhe suas questões existenciais], terá de dar à sua vida uma resposta nesse nível [arcaico, ontológico, mítico-religioso], seja o sujeito “formalmente religioso" ou não; e seja, também, a resposta, formalmente religiosa ou não. Será fundamentalmente religiosa. Enfim, o ferido narcísico terá, necessariamente, de ser profundo para curar-se. Ainda que essa "cura" seja sempre relativa. Sim: a cura da ferida primal é sempre relativa.
O ferimento edípico não traz consigo tais exigências. Complementarmente, traz a exigência de “amor maduro inserido em adaptação social”. Em termos adaptativos, sua "cura" é mais localizável, mas não a considero mais essencial. Todos nós, sempre, nos curamos "em parte" de nós mesmos e de nossa própria história, numa perspectiva mais radical. E eu sempre adoto esta perspectiva.
O ferimento Narcísico clama pela questão: “o que é sonho e ilusão, qual a factibilidade de estar [ou não] no mundo?!”. Para os analistas mais costumeiramente interessados nos dilemas edipianos, esse âmbito de questão só era concebível aos psicóticos ["isso é real ou não?!"]. Ocorre aí um erro crasso: a esmagadora maioria dos feridos narcísicos não “psicotiza”, não entra na esquizofrenia ou na perda dessa fronteira eu-mundo. Mas tal fronteira fica “baça” durante toda a vida. E suas questões vitais são “trazer substância ao mundo”: substância no sentido do élan vital [do “engajamento prazeroso, ou significativo”], e no sentido de “substância valorativa” [ou seja: “o mundo é um lugar que pode comportar significado”, “que pode comportar valor”]. Isso antes [para além-e-aquém] de ser ou não “bem sucedido”, de obedecer [ou não] ao “cronograma social das fases da vida” [casar, ter filhos, tirar carteira de motorista, votar, nas idades esperadas...]. Para o grande ferido, essas conquistas mal são concebíveis para si. Em não sendo concebíveis, a “desejabilidade” desses bens é mais relativa do que podem supor os edipianos [que projetam nos feridos narcísicos suas próprias noções de desejo].
A inveja narcísica é inveja/ânsia de “poder habitar o mundo”[!], de poder senti-lo como real e, também, de alguns potenciais seus [entrevistos, como Ideais] que não puderam ser realizados. É inveja de uma vida por-viver [a própria!], ou de uma tira biográfica-que-poderia-ter-sido [isso é “inveja nostálgica de si mesmo”], com uma conotação bem diversa [e mais primal, mais arcaica] do que a inveja edípica ligada a conflito e disputa externas. O conflito e disputa narcísicos [na base de uma indagação ontológica: “O que posso ser eu? O que podem ser as coisas?!”, e de uma indagação cosmogônica: “O que pode ser criado?”; além de uma indagação epistêmica: “O que pode ser conhecido?!”; e, sobretudo, de todos esses registros de indagação co-implicados] são conflitos e disputas internos, com a própria história do sujeito e suas lacunas. Conflitos esses que, naturalmente, são externalizados no “mundo de relação”. Mas são internos. E seu âmbito é pré-adaptativo, e não tem a ver com “conquistas sociais”, mas com “substância da realidade” [“se as coisas são irreais, o que há pra conquistar?!”]. Que isso fique bem claro, para que se dimensione o Ferimento Narcísico em clave não falseada.
Os “medos impensáveis” de Winnicott se referem não só ao psicótico, mas a um plano de fundo [paisagem interna] também presente [em maior ou menor grau] no senso de self [e de mundo] de todo ferido narcísico grave. Daí a enorme relevância do insight de Colin Wilson, que não trabalha com os construtos analíticos, de fazer a assertiva acima, falando do “Mundo sem Valores”: “É tão impossível exercer liberdade num mundo irreal quanto saltar enquanto se está caindo.” Na mosca. Bingo. Sem querer, ele acabou nomeando um dos “medos impensáveis” postulados por Winnicott.
As questões narcísicas são mais fundamentais, mais básicas e mais sérias. Também porque dizem mais da Ontologia do que do Desejo [da possibilidade de “se sentir sendo”, antes de se sentir “roubado ou tripudiado”, ou de se invejar o irmãozinho que ganha carinho ou o papai que come a mamãe]. As questões narcísicas são “fundantes” e fundamentais. E não nos esqueçamos que a Ontologia abrange o Ser, o Uno e o Devir, podendo abarcar questionamentos extremamente sutis, em dependência do "horizonte de indagação" do ferido.
Quando se pensa em Narcisismo, toca-se, obrigatoriamente, em questões de Ontologia, de Filosofia, de Epistemologia [“o que pode ser conhecido?!”] num sentido bem básico, arcaico e, como disse acima, “religioso” desses termos. Um ferido narcísico que se trabalhe [que trabalhe suas questões existenciais], terá de dar à sua vida uma resposta nesse nível [arcaico, ontológico, mítico-religioso], seja o sujeito “formalmente religioso" ou não; e seja, também, a resposta, formalmente religiosa ou não. Será fundamentalmente religiosa. Enfim, o ferido narcísico terá, necessariamente, de ser profundo para curar-se. Ainda que essa "cura" seja sempre relativa. Sim: a cura da ferida primal é sempre relativa.
O ferimento edípico não traz consigo tais exigências. Complementarmente, traz a exigência de “amor maduro inserido em adaptação social”. Em termos adaptativos, sua "cura" é mais localizável, mas não a considero mais essencial. Todos nós, sempre, nos curamos "em parte" de nós mesmos e de nossa própria história, numa perspectiva mais radical. E eu sempre adoto esta perspectiva.
O ferimento Narcísico clama pela questão: “o que é sonho e ilusão, qual a factibilidade de estar [ou não] no mundo?!”. Para os analistas mais costumeiramente interessados nos dilemas edipianos, esse âmbito de questão só era concebível aos psicóticos ["isso é real ou não?!"]. Ocorre aí um erro crasso: a esmagadora maioria dos feridos narcísicos não “psicotiza”, não entra na esquizofrenia ou na perda dessa fronteira eu-mundo. Mas tal fronteira fica “baça” durante toda a vida. E suas questões vitais são “trazer substância ao mundo”: substância no sentido do élan vital [do “engajamento prazeroso, ou significativo”], e no sentido de “substância valorativa” [ou seja: “o mundo é um lugar que pode comportar significado”, “que pode comportar valor”]. Isso antes [para além-e-aquém] de ser ou não “bem sucedido”, de obedecer [ou não] ao “cronograma social das fases da vida” [casar, ter filhos, tirar carteira de motorista, votar, nas idades esperadas...]. Para o grande ferido, essas conquistas mal são concebíveis para si. Em não sendo concebíveis, a “desejabilidade” desses bens é mais relativa do que podem supor os edipianos [que projetam nos feridos narcísicos suas próprias noções de desejo].
A inveja narcísica é inveja/ânsia de “poder habitar o mundo”[!], de poder senti-lo como real e, também, de alguns potenciais seus [entrevistos, como Ideais] que não puderam ser realizados. É inveja de uma vida por-viver [a própria!], ou de uma tira biográfica-que-poderia-ter-sido [isso é “inveja nostálgica de si mesmo”], com uma conotação bem diversa [e mais primal, mais arcaica] do que a inveja edípica ligada a conflito e disputa externas. O conflito e disputa narcísicos [na base de uma indagação ontológica: “O que posso ser eu? O que podem ser as coisas?!”, e de uma indagação cosmogônica: “O que pode ser criado?”; além de uma indagação epistêmica: “O que pode ser conhecido?!”; e, sobretudo, de todos esses registros de indagação co-implicados] são conflitos e disputas internos, com a própria história do sujeito e suas lacunas. Conflitos esses que, naturalmente, são externalizados no “mundo de relação”. Mas são internos. E seu âmbito é pré-adaptativo, e não tem a ver com “conquistas sociais”, mas com “substância da realidade” [“se as coisas são irreais, o que há pra conquistar?!”]. Que isso fique bem claro, para que se dimensione o Ferimento Narcísico em clave não falseada.
Os “medos impensáveis” de Winnicott se referem não só ao psicótico, mas a um plano de fundo [paisagem interna] também presente [em maior ou menor grau] no senso de self [e de mundo] de todo ferido narcísico grave. Daí a enorme relevância do insight de Colin Wilson, que não trabalha com os construtos analíticos, de fazer a assertiva acima, falando do “Mundo sem Valores”: “É tão impossível exercer liberdade num mundo irreal quanto saltar enquanto se está caindo.” Na mosca. Bingo. Sem querer, ele acabou nomeando um dos “medos impensáveis” postulados por Winnicott.
Winnicott não é um pensador meia-boca. Observando a interação de bebês com sua espátula de médico, ele pôde intuir [ou “conceber intuitivamente”] alguns aspectos do mundo interno bem primitivo desse self-bebê. A princípio, ele o fez a partir da maneira desses bebês interagirem com a espátula: com medo, suspeita, confiança, pondo-a na boca ou não, jogando-a ou não ao chão, chorando, rindo, demonstrando curiosidade/ atenção, etc e tal. Testando seus construtos ao longo de quatro décadas de trabalho pediátrico e analítico [tendo o registro das próprias mães, além de suas observações, de cerca de 20000 bebês; sim: eu disse vinte mil bebês!], Winnicott pôde chegar a formulações de grande acuidade. O leigo poderá entender seu raciocínio, uma vez que ele dava palestras em rádios de Londres. Basta ler um livro menos técnico, como “Tudo Começa em Casa”, por exemplo.
Há uma implicação nessa situação que eu apresentei da “mão que alcança o mundo”, também apresentada por Winnicott [sim: pensemos numa boca de bebê que alcançava sua espátula de médico...], que diz respeito à criatividade. As raízes da possibilidade de criar [ou de “crer na criação”, e por decorrência, de poder crer no “valor da criatividade”] também se dá a partir desse esteio. Nesse “valor da criatividade” eu incluo o poder aspirar e querer incorporar imagens, noções, ideias, valores ao mundo, a partir da confiança a possibilidade de vislumbrar/ oferecer algo de seu [de sua própria visão] ao mundo de relação. A crença na possibilidade de “efetivar algo a partir de dentro” tem sua matriz originária nesse encontro “mão-ambiente”, “mão-mundo” [mão que é responsável pela co-criação do mundo], ou “boca-seio”, se quisermos usar uma imagem freudiano-kleiniana. Essa possibilidade de crença é diferente [mais arcaica ou primária, porque anterior, temporal e axiologicamente] ao “querer agradar à mãe concebendo que lhe dá algo de valioso” de seu [fezes como representativas de seu “bebê interno”, por exemplo]. Poder criar algo de real vem antes de poder dar “algum algo a alguém”. A clave edípica falhará em todas as instâncias de leitura quando se tentar aplicá-la ao Ferimento Narcísico. Nunca será demasiado frisar: tem de haver “substância à realidade” para que se comece a querer olhar para as “vicissitudes da adaptação à realidade”. Não faz sentido colocar a segunda variável, derivada, na frente da primeira, primal em seu estatuto. Como não faz sentido pretender que no primeiro tempo de vida, seja o bebê a ter o ônus de se adaptar ao ambiente, e não a responsabilidade do ambiente de oferecer suporte adaptativo à chegada do bebê. Isso é mais do que por a carroça na frente dos bois: é não entender o que sejam um e outro. Registros distintos. Claves distintas. Por isso, reescrevo o capítulo anterior com essas novas nuances, e com a ajuda de alguns insights winnicottianos, dentre outros.
Nessa vivência de contato e frustração arcaicos estão as matrizes do élan criativo [artístico, filosófico, religioso, científico-prospectivo]. Naturalmente que se houver fracasso absoluto nesse ambiente primário não haverá esse élan. Eu, no meu léxico pessoal, preferi optar pelo termo “ignis” como o construto que melhor define essa “propulsão interna”, em ambos os sexos. Ignis é a faísca, a ignição inicial, o disparador do processo; "motus" é a faísca em movimento, a condução dessa propulsão interna a sua efetivação; animo, em latim, refere-se à coragem implicada no processo e, simultaneamente, adquirida no e pelo processo.Etimologicamente, esse seria o animus junguiano, o "fôlego", presente em ambos os sexos. Na verdade, podemos considerá-lo um fator-yang criativo, que se expressa e se modula em fases, em ambos os sexos. “Ignis, Motus e Animo/Animus definem a espinha dorsal desse Élan Libidinal Criativo. O termo “Eros“ não é adequado para tal propulsão, pelo fato de Eros estar muito voltado “pra fora”. Ignis implica numa força prospectiva que “cavouca” o mundo interno tentando incorporar um Algo desse mundo interno no externo: apresentando-o, comunicando-o, propondo-o, viabilizando-o e visibilizando-o. Tornando-o “viável” e “visível”, ao um só tempo. “Ignis” olha pra fora só depois de cavoucar [e muito!] dentro. Ignis implica na conquista [básica para os feridos narcísicos] da noção de “crença na substância do interno” [os sonhos arquetípicos em muito ajudam o sujeito nessa tarefa!], bem como na viabilidade do mundo externo, ambos os elementos facultando o atrevimento de se fazer o movimento dialético em direção à expressão criativa do primeiro no segundo [motus e animo/animus]. Isso é Ignis, algo bem sofisticado. Essa expressão nada tem de “evacuatória” [no sentido da “projeção de objetos internos danificados ou agressores na obra criativa, ainda que na criação também exista catarse]. Essa criatividade implica na busca dos “possíveis” [ou “(im)prováveis”] no horizonte do que ainda não é dado no ambiente cultural-grupal. Partejar e expressar um possível [ainda que improvável no horizonte da mesmice cultural] é a tônica desse impulso. Isso é Ignis, Motus e Animo. Tampouco se trata da “projeção psicótica das alucinações do sujeito no mundo” [ainda que se dê estatuto estético a tal produção, como no caso de Arthur Bispo do Rosário, a despeito de seu relativo valor integrativo naquele caso, e dos pacientes de Nise da Silveira no Engenho de Dentro...], mas de “busca heurística por valor e significado, traduzida enquanto criatividade”. Essa criatividade esbarra em invariâncias, em temas e ideais relativos aos registros de indagação por mim postulados acima: ontologia, cosmologia, epistemologia, religião. Autores diversos, aqui e acolá, esbarram, por vezes, nos mesmos insights: análogos ou estruturalmente próximos [como matemáticos esbarram em proposições análogas de teoremas, ou “redescobrem”, por caminhos próprios, as proposições de outros]. Isso mostra a substância do mundo imaginal, sua substancialidade inequívoca, tal qual há, inequivocamente, substância na noção de número, proporção, quantidade, valor. Essa prospecção criativa, que perscruta o interno à cata da “visibilização dos prováveis” alcança algo análogo à realidade dos números. Esse “algo” inclui “o âmbito do preenchimento de uma falta”. A esse “algo” [e a esse âmbito] eu chamo “arquétipo”. Essa versão mais expositivamente detalhada do que a de Jung será, minuciosamente, elaborada na interpretação de um Sonho Numinoso. Um sonho só, que exigirá páginas e páginas de minuciosa “exploração analítico-amplificatória”. Este será o fulcro deste ensaio. Resta dizer, ainda, que o Ferido Narcísico estará, necessariamente, mais engolfado nesse mundo, nessa sondagem “introvertida” e por isso, lidará mais diretamente com esse mundo imaginal do que o paciente clássico freudiano, edípico por excelência. Estará mais às voltas com essas possibilidades de investigação e resolução imaginais propostas a ele, não por capricho ou diletantismo, mas por lhe serem “existencialmente vitais”. Por ele se ver premido a tal prospecção em suas singulares circunstâncias de vida. Eis a chave da “abundância arquetípica nos grandes feridos”.
Friso aqui que este ativamento do mundo imaginal-arquetípico inclui o que chamarei aqui de “refluxo” da libido, como se pensa no refluxo das marés. Libido aqui tratada no sentido junguiano, como no capítulo anterior, como élan/foco/ “interesse pelo mundo externo”, de interesse pelo mundo objetal-externo. [Ignis seria a recuperação da libido a partir de dentro, por uma confiança que se erige a partir de dentro!]. Se a mão não alcança o ambiente, ela se retrai. E explora o próprio sujeito-da-mão. [A mão a si se explora e quem a conduz]. Não masturbatoriamente, já que a metáfora não pretende ter essa literalidade. Se o self não encontra o mundo externo, volta-se para o mundo interno. Uma grande acuidade [e/ ou temor] quanto às propriocepções [hipocondria, sendo um dos exemplos já dado anteriormente, no capítulo anterior], uma visão nuançada de estados psíquicos singulares [que envolvem solidão, medo, desespero, vigilância sobre corpo-ambiente, atenção ao eu que age, como um estado dissociado de não ser plenamente enraizado no corpo, não estar plenamente incorporado, e como se houvesse certa mecanização e despersonalização em tudo] são algumas possibilidades comuns de vivências [bem precoces] da maioria dos grandes feridos. Sendo essas possibilidades frequentes, nesse grupo [bem mais do que se supõe], o mundo perceptivo-imaginativo adquire colorações próprias [e típicas em cada situação, se fizermos um extenso mapeamento do terreno das vicissitudes humanas], e uma resposta criativa e singular é eliciada para cada sujeito que se vê em meio a tais imagens e indagações: sejam estas imaginativo-ontológicas, (-)religiosas, (-)cosmológicas, (-)éticas, (-)epistêmicas, etc, etc, etc e tal; geralmente, todas elas num pacote muitíssimo bem embrulhado. Dir-se-ia "lacrado", aos olhos menos atentos.
O repertório imaginativo se torna hipertrofiado pelo refluxo da libido [eis a gênese da “abundância arquetípica” dos narcísicos], contrapondo-se ao (des)interesse pelo mundo que não o acolhe, nem espelha, nem corresponde à satisfação de necessidades primárias, em larga medida. Dessa maneira, o self se vê fadado a fazer suas perguntas em meio a essa ambiência imaginal interna, “muito mais dentro do que fora”, uma vez que o mundo externo parece “irreal”. Se a frustração do self e o fracasso ambiental forem maiores, o sujeito se perderá no vórtice desse recuo excessivo, perdendo-se o link [ainda que frouxo] com o ambiente. Temos, neste último caso, a eclosão dos estados psicóticos. Refluxo da libido e ativação da faixa imaginal [inclusive com aspectos imaginais correlatos ao fracasso ambiental, “Imagos ameaçadoras internas”, ou “O Numinoso Sombrio”] são “o pão de cada dia” no acidentado desenvolvimento desses selves feridos. Estarão em contato com Imagos, Ideias e Arquétipos em profusão muito maior do que os neuróticos edipianos podem conceber, ainda que não participem da realidade delirante dos psicóticos na maioria das vezes [excetuando-se os casos-limites descritos logo acima, neste mesmo parágrafo]. Essa “zona liminar” confunde os saudáveis bem adaptados e os que lidam com elaborações edipianas triangulares. Como entender o leque de questões “de si para si”, tão carregadas imageticamente, feitas pelo ferido narcísico desde cedo?! [Ou desde a chegada ao consultório?!]. Como entender que ele tenha sido “compelido a fazer perguntas esdrúxulas que nunca lhe ocorreram fazer?!” [Nem ocorreu ao próprio terapeuta se fazer ao longo de seu desenvolvimento e/ou de sua própria análise pessoal?!]. Imaginá-los na posição psicótica seria uma acomodação simplificadora que pouparia ao observador menos disposto e arguto todo o trabalho de alcançar resposta para essas perguntas vitais. Por isso, Nathan Schwartz-Salant diz em seu livro “Narcisimo e Transformação do Caráter” [citado nas sugestões bibliográficas deste capítulo] que o ferido narcísico tem uma “individuação às avessas”: vive as imagens numinosas [sobretudo sombrias, mas com lampejos das salvíficas] antes de lidar com os problemas de persona-sombra [máscara social e material reprimido]. Isso é uma inversão do que se esperaria! Sim: tantos “junguianos devotos” quanto freudianos pensariam na adaptação ao mundo externo como vindo antes da adaptação ao mundo interno! Suas imagens numinosas/ arquetípicas ou muito peculiares, arcaicas e solenes [essa tal exuberância imagética] se lhe impõem [e pedem sua atenção!] antes de qualquer possibilidade de “adaptação social bem sucedida” ou a caminho de sê-lo. E esse é o âmbito do trabalho analítico a ser feito nesses casos.
Por enfatizar a coloração necessariamente arcaica, mítica, desses estratos para os quais a libido [“interesse”, “atenção interessada”] se voltou, defensiva e introvertidamente, é que poder-se-ia visualizar o meu trabalho como "nas vizinhança da Psicologia Analítica". Mas nem tanto assim, porque não gosto nem um pouco da coloração reverencial que os junguianos de carteirinha dão aos achados do "mestre", bem como o uso esquemático-subserviente que fazem de seus quatérnios, da noção de "feminino sagrado" e tantas outras. Não me filio ao clube. Por isso mesmo, verão que uso, com frequência esmagadora, os construtos de Winnicott, Bion e James Grotstein nesse ensaio, mas enfeixando-os nessa “clave mítico-arcaica”, procurando fazer justiça à natureza e força do material que se encontra na exploração/ sondagem desses psiquismos precocemente feridos. Ficará bastante claro como tais noções não se antagonizam, nem rivalizam. Mas se ilustram. Isso na dependência das perguntas [ou equação] que as enfeixe.
Se o leitor quiser aprofundar as análises de Jung sobre esse tal movimento-de-recuo-defensivo-introvertido-mórbido-prospectivo da libido [que eu chamo de refluxo libidinal] é só acompanhar a bibliografia sugerida, indo no índice remissivo atrás do tópico “regressão da libido”. Libido para mim é “atenção interessada", o que inclui Eros, mas extrapola Eros. “Ignis” é “faísca” no sentido de “propulsão a partir de motivação interna e imaginal, visando incorporação no mundo”. É um fator “prospectivo imaginal” que, no entanto, não prefigura, de forma alguma, "o que o sujeito está destinado a ser", mas o quanto de realidade ele anseia gestar, o que de realidade ele anseia dar forma, em contraponto à "realidade desrealizada" que encontra no mundo dado. Esse é um conceito muito específico. Como já frisei, descarto a "individuação" junguiana. Ignis é um fator-yang [de movimento em direção ao mundo] a partir da introversão, o que pode parecer paradoxal, mas tem a ver com o movimento dialético de “dar substância ao mundo ainda-não-real ou potencial, [eis o detalhe fundamental que se segue:] a partir de dentro, porque ele parece mais substancialmente real do que a própria realidade”. Alguns enxergarão o quanto isso é platônico [e também junguiano, winnicottiano ou bioniano, em alguma e variada medida]. Outros conceberão que isso é o avesso fotográfico [ou “o negativo”] do platonismo clássico. Por ora, basta-me que a associação com o referencial platônico seja feita, pelo verso ou pelo avesso. Definitivamente, isso não é "exatamente junguiano". Fora as distinções que faço questão de frisar [como elenquei sumariamente acima, em relação às anotações do Livro Vermelho] entre meu modo de operar as distinções entre o status ontológico de cada imago que surge e o modo junguiano de alinhavá-las, porque não me interessa equalizá-las procurando, artificial e precipitadamente, um "princípio unificador adiante" que resolva tudo [a Unidade no e do Si Mesmo]. A releitura dos itens de minha crítica ao Livro Vermelho, alguns parágrafos acima, pode sugerir um belo roteiro de exploração das diferenças entre minha abordagem e a junguiana.
Os pontos de interseção entre autores às vezes só se deixam entrever nas notas de rodapé. O analista cuja postura humana mais admiro [pelo conjunto: vida e obra] é Winnicott. Acima de todos os outros. Ele não usa os termos imagéticos que seriam fiéis ao que eu vi, vivi e sei por experiência própria. Mas, frequentemente, fala das mesmas coisas. Muito frequentemente, aliás. Numa de suas “notas” feitas ao artigo “Desenvolvimento Emocional Primitivo”, escrito em 1945, diz ele:
“Através da expressão artística, há a esperança de manter contato com nossos selves primitivos, onde se originam os sentimentos mais intensos e sensações amedrontadoramente agudas, e ficamos realmente empobrecidos, se somos apenas sãos”.
“Ficar empobrecido com a mera sanidade”. Não há qualquer “glamourização da loucura” [ou da angústia] nessa assertiva, apenas a constatação de que nessa esfera ou nesse âmbito se encontram as tais questões vitais que eu aventei acima [epistêmicas, ontológicas, religiosas, cosmológicas, etc e tal] em seu núcleo embrionário. Com linguagem bem distinta, Winnicott está me apresentando seu insight sobre esse âmbito.
Nesse mesmo artigo encontro uma citação, acompanhada de nota de rodapé, que ajuda a esclarecer parte das noções apresentadas acima. Ele postula uma relação objetal primitiva, descrevendo-a da seguinte forma:
“Neste caso, o objeto ou o meio ambiente é parte do self, como a pulsão que o evoca”.
Objeto-ambiente sendo “lidos”/“sentidos”/"alcançados" a partir de dentro. Estão confluídos. Sendo que a primazia, para o self [seu foco de “interesse atento”] é para “o espelho do lado de dentro”. [Alguns acham que este é o espelho de Alice]. O mundo externo parece um eco desse espelho, e é preciso verter realidade para a “(ir)realidade” externa. Claro que o comentário é meu, e não de Winnicott. E ele mostra o quão platônica é minha visão, muito antes [e além] de "junguiana". Vamos à sua nota de rodapé:
Objeto-ambiente sendo “lidos”/“sentidos”/"alcançados" a partir de dentro. Estão confluídos. Sendo que a primazia, para o self [seu foco de “interesse atento”] é para “o espelho do lado de dentro”. [Alguns acham que este é o espelho de Alice]. O mundo externo parece um eco desse espelho, e é preciso verter realidade para a “(ir)realidade” externa. Claro que o comentário é meu, e não de Winnicott. E ele mostra o quão platônica é minha visão, muito antes [e além] de "junguiana". Vamos à sua nota de rodapé:
“Isso é importante por causa de nosso relacionamento com a psicologia analítica de Jung. Nós tentamos reduzir tudo à pulsão, e os psicólogos analíticos reduzem tudo a essa parte do self primitivo que parece ser o meio ambiente mas que surge da pulsão (arquétipos). Deveríamos modificar nossa visão de forma a abarcar ambas as ideias e ver (caso seja verdade) que, no estado primitivo teórico mais antigo, o self tem seu próprio meio ambiente, autocriado, que faz parte do self tanto como as pulsões que o produzem. Este é um tema que requer maior desenvolvimento.”
Beleza. Winnicott mostra um insight brilhante aqui: existe um ambiente arcaico, autocriado pelo self, que é sentido como seu ambiente, tal como as pulsões são identificáveis. Esse ambiente interno é o “locus do arquétipo”. O psicanalista enfatiza [diz ele, na época] as pulsões. O psicólogo analítico enfatiza essa ambiência [onde os arquétipos são a “paisagem vivenciada”]. Precisamos reunir ambos os âmbitos. Eu encerrei o capítulo anterior mostrando uma afirmação de James Grotstein no mesmo sentido desta de Winnicott.
Quanto à imagem masculina, impressa em ambos os sexos, pode ser chamada, simplesmente de imago hominis, já que Jung mostra certo apego medieval ao latim, uma vez que vimos que "animus" tem outra valência e função, para ambos os sexos. Já a "anima", anunciada por Jung, pode ser chamada se "imago feminam", nessa perspectiva das imagens femininas que se aglutinam ao longo do tempo, se metamorfoseiam e se aperfeiçoam. Anima, como fator ying que dá profundidade à alma (pois é disso que se trata, se quisermos polarizá-la com o animus, como redefinido acima) inclui o espaço de recepção do outro em ambos os sexos: de recepção, de auscultação empática das filigranas e entrelinhas das questões alheias e, por fim, da possibilidade de abrigá-las compassivamente em nós mesmos. Receptio, auditus e misericordiae ou, simplesmente, misericordia, como sinônimo de compaixão/piedade, seriam as etapas de aprofundamento ying em ambos os sexos, como "alargamento da alma", muito mais do que a "atração e modulação das musas femininas". Com isso, redefino e proponho uma nova clave para o que Jung afirmou serem os papéis das "imagens da mulher no homem" e das "imagens dos homens" [sempre mais plurais nelas do que neles] em sua proposta das funções internas das contrapartes de gênero em ambos os sexos. Não, a questão é mais complexa e exige que se leiam as contrapartes de gênero [genus counterparts] como imagos supra-gêneros, sem as especificidades das funções yang e yin por mim explicitadas acima. Mais uma vez, sinto que Jung superpões categorias de questões distintas. E o tempo tem provado isso, de forma inequívoca, no tocante aos gêneros e suas imagos dominantes.
Quanto à imagem masculina, impressa em ambos os sexos, pode ser chamada, simplesmente de imago hominis, já que Jung mostra certo apego medieval ao latim, uma vez que vimos que "animus" tem outra valência e função, para ambos os sexos. Já a "anima", anunciada por Jung, pode ser chamada se "imago feminam", nessa perspectiva das imagens femininas que se aglutinam ao longo do tempo, se metamorfoseiam e se aperfeiçoam. Anima, como fator ying que dá profundidade à alma (pois é disso que se trata, se quisermos polarizá-la com o animus, como redefinido acima) inclui o espaço de recepção do outro em ambos os sexos: de recepção, de auscultação empática das filigranas e entrelinhas das questões alheias e, por fim, da possibilidade de abrigá-las compassivamente em nós mesmos. Receptio, auditus e misericordiae ou, simplesmente, misericordia, como sinônimo de compaixão/piedade, seriam as etapas de aprofundamento ying em ambos os sexos, como "alargamento da alma", muito mais do que a "atração e modulação das musas femininas". Com isso, redefino e proponho uma nova clave para o que Jung afirmou serem os papéis das "imagens da mulher no homem" e das "imagens dos homens" [sempre mais plurais nelas do que neles] em sua proposta das funções internas das contrapartes de gênero em ambos os sexos. Não, a questão é mais complexa e exige que se leiam as contrapartes de gênero [genus counterparts] como imagos supra-gêneros, sem as especificidades das funções yang e yin por mim explicitadas acima. Mais uma vez, sinto que Jung superpões categorias de questões distintas. E o tempo tem provado isso, de forma inequívoca, no tocante aos gêneros e suas imagos dominantes.
Marcelo Novaes
Bibliografia sugerida:
Alves, Rubem. (2003). O que é Religião? São Paulo: Loyola.
Barbosa, Ricardo. (2004). Schiller e a Cultura Estética. Rio de Janeiro: Zahar.
Evangelho de São João.
Goethe, Johan Wolfang Von. (1986). Memórias: Poesia e Verdade. Editora da Universidade de Brasília, Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2ª edição.
Grotstein, James. (1999). O Buraco Negro. Ed. Climepsi, Lisboa: Ed. Climepsi.
Grotstein, James. (2003). Quem é o Sonhador que Sonha o Sonho? Um Estudo de Presenças Psíquicas. , Rio de Janeiro: Imago.
Jacobi, Jolande. (1991). Complexo, Arquétipo, Símbolo. São Paulo: Cultrix.
Platão. (2002). O Banquete. Rio de Janeiro: Difel.
Schelling, Friedrich. (2001). Filosofia da Arte. São Paulo: EDUSP.
Schiller, Friedrich. (1990). Cartas Sobre a Educação Estética do Homem. Iluminuras, São Paulo: Iluminuras.
Schiller, Friedrich. (2002) Kallias ou Sobre a Beleza. Rio de Janeiro: Zahar.
Schiller, Friedrich. (1992). Teoria da Tragédia. São Paulo: EPU.
Schlegel, Friedrich. (1994). Conversa sobre Poesia. São Paulo: Iluminuras.
Schwartz-Salant, Nathan. (1988). Narcisismo e Transformação do Caráter. São Paulo: Cultrix.
Wilson, Colin. (1985). O Outsider: O Drama Moderno da Alienação e da Criação. São Paulo: Martins Fontes.
Winnicott, Donald. “Desenvolvimento emocional primitivo” (1945), in “Textos Selecionados da Pediatria à Psicanálise” (pp.269-285), 1988. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3ª edição.
Winnicott, Donald. (2005). Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed.
Winnicott, Donald. (1990). A Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago.
Winnicott, Donald. (1989). Tudo Começa em Casa. São Paulo: Ed. Martins Fontes.