Nêmesis e o Solo de David Gilmour









"O Exílio gera devaneios. Mas o Exílio em si não é um devaneio".

Deixo o leitor com esta frase para reflexão inicial, abarcando todas as formas de Exílio [inclusive o Exílio dentro de casa, o Exílio da Pátria e os devaneios sobre a Pátria, o Auto-Exílio e os devaneios sobre si mesmo]. Os devaneios decorrentes do Exílio [seja ele qual for], não subtraem deste sua qualidade factual, não delirante nem fruto de devaneio. O leitor pense fundo a respeito.

Olhemos uma jovem de 14 anos, numa família de oito irmãos. Ela é a penúltima na lista de filhos, em termos de idade. Ela é a única a não saber a identidade de seu pai biológico. Não que seja “adotiva”, nada disso. A situação é bem específica.

A mãe desta jovem é testemunha de Jeová, e teve filhos com cinco parceiros. Assim sendo, alguns dos irmãos [no caso: dois pares de irmãos] possuem o mesmo pai biológico. Dois dos cinco parceiros possuem dois filhos cada com tal mãe. Dos demais, cada qual possui um pai. Mas há algo interessante [nada interessante, na verdade, apenas “peculiar” e “trágico”, ao mesmo tempo] em relação à mocinha em questão: a mãe não quis procurar o pai por ser ele de outro nível social em relação a ela e a todos os demais. Ele é o único abastado. Na verdade, é dono de uma rede de comércio, ampla, uma cadeia de supermercados. Mas isso não é informado em pormenores para que a menina não possa sondar qual seja esta rede. Mas ela é “diferente” por causa disso e de outras variáveis, como veremos. Ela "é diferente, ou ela imagina ser, Marcelo?" Acompanhe-me.

Todos os irmãos [homens e mulheres, de todas as idades] dizem à mocinha em questão que “ela deve tudo à mãe dela, e que ela precisa ser muito grata à mãe, uma vez que é cuidada sozinha, sem pai”. O “cuidada sozinha” tem peculiaridades sádicas, como veremos.

Ela é distinta por ser a única loira e de olhos claros na família. Os irmãos, já há muito conseguiram se libertar da confissão religiosa da mãe, até com a ajuda de seus pais biológicos conhecidos, e com seu apoio recíproco [=entre os próprios irmãos]. Assim, todos eles dizem à mocinha em questão: “nós já decepcionamos a nossa mãe, falhamos com ela, nenhum de nós seguiu o caminho do Salão do Reino; não vá decepcioná-la você também, que só depende dela”. Este é apenas o início de sua “diferenciação de inscrição no seio desta família” e consequente proscrição e ocupação do locus de “bode expiatório” [nos moldes do “todos contra um”, explicitado no capítulo anterior deste ensaio], como se irá confirmar ao longo desta exposição. Não há devaneio algum na situação de “exílio-em-casa” desta jovem. Ela não delira com nada disso. Os outros é que me parecem pouco sãos.

Prossigamos. Em sendo a única que deveria à mãe uma “gratidão superlativa”, segundo a lógica comum [inclusive a da própria mãe, e dos pais dos outros filhos], ela é a única que nunca foi à praia, a única que não comemora aniversários ou natais, aquela que nunca usou calça comprida, nunca foi a um shopping, e acompanha a mãe ao Salão do Reino das Testemunhas de Jeová com a regularidade esperada. [Se um dia vier a ter um namorado, ele deverá ser do Salão do Reino também, já lhe foi dito; embora todos os parceiros da mãe jamais o fossem...]. Ela cumpre essa rotina, a agenda que lhe é dada inteiramente pela mãe e família, além de acompanhar uma “irmã mais velha na fé” nas visitações proselitistas que algumas Testemunhas de Jeová fazem às casas das pessoas, aos domingos. Sim, os seus domingos também já estão “agendados”. Ela é uma “pregadora e propagadora 'inadvertida' de sua fé” [entenda-se: prega 'na marra'], pouco convicta e pouco preparada para a catequese ou seja lá o nome que deem à exegese precoce e temerária à qual é chamada a participar [provavelmente, a isso se dê o nome de 'testemunho'], a contragosto, por “dívida e gratidão [cobrada por todos, friso] em relação à mãe". Uma dívida impagável. Nesses domingos agradáveis, a menina, acompanhada de jovens muito mais experientes e "maduras" do que ela [de mais de vinte e cinco anos], ouve e assente[/concorda, anui com a cabeça] com as falas da irmã que conduz o ofício edificante de esclarecer as verdades da fé às famílias que acolhem ambas para tal fim. Nessas pregações, a menina, frequentemente, se atemoriza com algumas das implicações lógicas e éticas do que “ela mesma prega, por tabela” [vicariamente: assentindo com a pregação da outra]. Se esta mocinha se sentir “proscrita ou exilada em sua própria família, e de suas próprias convicções”, alguém poderá contestar que isso é uma “viagem” da guria. Projeção da menina de sentimentos ávidos, competitivos ou invejosos em relação aos irmãos, ao pai e à própria mãe, a quem deveria ser grata, por supuesto. É bom que o leitor me acompanhe com carinho, porque se essa menina não é, de fato [e eu friso a expressão “de fato”], um “bode expiatório”, alguém me diga, por favor, o que seja um.

Prossigamos mais, porque estamos só no início da peculiaríssima conjuntura desta jovem afortunada. Ela tem a bênção do duplo zelo da mãe [em nome dela própria, mãe, e do pai que optou por ocultar dela, filha: a mãe se vê "como pai e mãe da menina"], a garantia de uma agenda que lhe é imposta por irmãos, padrastos e mãe [“todos a favor dela”] para que ela seja “a única representante dos valores que todos prezam, mas que ninguém segue”. Supostamente, apenas a mãe. Mas não muito, como se infere da biografia da mesma.  

Continuemos com a abençoada. Por ser a única filha de um homem abastado, ela se viu na situação de nunca ter ido a um shopping. O pai, que lhe é negado saber quem seja, vive de vendas em lojas procuradas por muitos, a mãe frisa pra ela. Este paradoxo não parece ao leitor um “prêmio” fantástico a tal guria? Calças compridas [que o pai também vende], não lhe convêm, mas convém que ela saiba que ele as vende. Moça de família só usa saia, e não faz passeios fúteis. Nem comemora aniversários.

A mãe zelosa, quando tem um dinheiro extra, dá de presente aos filhos mais velhos [dois homens que já trabalham, e uma irmã], belas roupas, para eles "fazerem bonito" em seus empregos e em sua "vida social". Sim. Eles têm um “plus” de endosso de suas liberdades por parte da mesma mãe que as restringe à jovem, pois que esta "deu azar" de ter um pai que lhe poderia dar calças, blusas e passeios, mas que nunca foi comunicado do fato. Claro. Porque a mãe “não quis parecer interesseira para aquele único parceiro que tem posses, diante da realidade dela e de todos os demais que a engravidaram”. Acham que eu terminei? Não. Estou apenas começando.

Tal menina, quando os irmãos produtivos "dela precisam" e "têm pressa para seus passeios", passa a roupa deles [friso: é incitada a fazê-lo, pela mãe e pelos irmãos beneficiados]. Faz uma refeição rápida pra eles também nessas ocasiões: passa um bife para a irmã que se apronta pra sair, mas não quer sair de barriga vazia nem com cheiro de comida, frita umas linguiças e faz um omelete para o irmão que “traz dinheiro pra casa” [mas também o gasta consigo mesmo em lazer, claro]. A mesma mãe que compra as camisas e calças para o belo desempenho social dos “filhos produtivos” [implicação necessária: “esta menina não produz nada”...], não tem dinheiro para a condução da filha às aulas de educação física, obrigatórias na escola dela, aos sábados de manha. “Isso é desnecessário”, diz a mãe, e todos repetem a mesma avaliação sobre a "inutilidade da educação física". A menina é alvo de zombarias na escola por ser a única a não ir a nenhuma aula de educação física, eis o corolário perfeitamente dedutível por quem tenha o mínimo de sensibilidade. Discussões acaloradas da mãe com a direção a respeito de “improcedência da menina repetir o ano [é boa aluna] por sua ausência nas aulas de educação física” [ela já repetiu um ano por esta específica razão...] não podem ser levadas em conta pelas crianças que a proscrevem e a discriminam no recreio [“a fraquinha preguiçosa, que não quer acordar cedo no sábado de manhã”]. E como poderiam as "razões dos adultos" [que "têm, sim, poder de vida e morte sobre as crianças", como não me canso de frisar, e parece que muitos analistas subestimam essa "onipotência parental" - e não a infantil - em famílias tirânicas...] interferir nesse julgamento das colegas, que culpabilizam a menina por aquilo que ela mesma é impedida de fazer? Se alguém vir alguma injustiça concreta nesta situação, esqueça os fatos, e pensemos nas pulsões vorazes e reivindicatórias da jovem, sem base necessária [ou plausível] na realidade, em suas circunstâncias concretas. Algum adulto se dera ao trabalho de explicar a essas crianças agressoras que a menina, simplesmente, era impedida de comparecer às tais aulas por sua própria família, por aqueles que "mandam nela"? A diretora, o próprio professor de educação física, alguém  teria tido a coragem de intervir nessa situação de chacota coletiva, dizendo aos zombadores: “Fulaninha de tal não vem, porque sua mãe não acha justo gastar dinheiro com passagens de ônibus para a escola no sábado”; alguém o fez? Alguém imagina que a palavra dela a respeito, para os que dela zombam, eliminaria a zombaria? Ela tentou: as chacotas aumentaram. Achavam que era desculpa dela, e que ela usava a mamãezinha pra se justificar.

Como há sonhos de perseguição e isolamento, há sonhos numinosos sombrios de terror em relação a figuras religiosas, podemos chamar tal jovem de “paranoica”, não é mesmo? Suas pulsões caóticas de inveja dos irmãos,  suas reivindicações ávidas motivadas por sua insaciabilidade e curiosidade edipiana em relação à cena primal [=o coito de dos pais] e outros lugares-comuns que tais é que são responsáveis pela “conjuntura psíquica” de tal garota, não é verdade? De fato, sua situação é bastante privilegiada, e ela é que não sabe ser "grata o bastante". Se tiver “ressentimentos”, saberemos culpá-la a partir de seus mecanismos projetivos de “eleição de inimigos ou perseguidores” [eleição gratuita, decorrente de suas tensões pulsionais apriorísticas e não às suas circunstâncias factuais...] para tais (res)sentimentos. “É uma ressentida, a jovem”. Se ela se encolher socialmente nos anos subsequentes a este que apresento, esses idílicos quatorze anos, dirão: “A moça traz ressentimentos por não conhecer o pai”, e outras explicações “rasas” [estou sendo educado, pois teria adjetivos muitíssimo mais peremptórios para qualificar tais explicações] para demarcar a posição nosológica da moça no quadro das psicopatologias clínicas correntes, não é provável? Afinal, na média, os insights analíticos não são tão pormenorizados na aferição desta “sutilíssima e milimétrica teia-de-proscrição tão caprichosamente [nos dois sentidos do termo] urdida pelos ambientes primários da jovem”. Alguém negará a esta moça sua posição legítima de “bode expiatório”, ou a própria ideia de vitimização multi-institucional [que é a que eu proponho] seria reduzida, também [e por conveniência], a “mais um devaneio”? Há muitas outras filigranas a partir de tal conjuntura exposta, inclusive no sentimento de opressão interna, de “mundo nublado” [ou mecanizado], de “semi-realidade no sentimento de se sentir (não) sendo ela-mesma” e na qualidade [no tônus a na ambiência] numinosa e sombria dos sonhos dessa jovem.

Imagine que tal jovem queira “apresentar seu mundo externo-interno a um estranho”. Irão rechaçá-la, pelas intensidades que tal apresentação comporta, com um agravante decisivo e sutil: essas próprias intensidades parecem engolfá-la. Ela teme algo que vive, vê e sente, e percebe que esse conjunto de dados seus os outros também temem nela! O cerco está completo:  O Círculo da Incomunicabilidade. 

Ela, naturalmente, está ensimesmada, “preocupada consigo mesma” [e alguém poderia, em sã consciência, “responsabilizá-la por isso?”] e, “por estar magnetizada neste mundo de névoas, ensimesmamentos e devaneios” [“o exílio causa devaneios, mas o próprio exílio não é um devaneio”, lembrem-se de meu alerta no início deste capítulo...], os outros [inclusive a maioria dos terapeutas ou analistas] se sentirão incomodados, como “instados a serem magnetizados pela atmosfera opressiva [externo-interna] que a magnetizou" [Cifra: Narciso]. Isso é o incômodo específico que os “enfeitiçados por si mesmos” causam ao interlocutor [mesmo ao analista menos sofisticado]. Quem está se defendendo do que e de quem, nessa situação específica? A menina que se cala por saber-se [intuir-se] temida, ou aqueles que deixam-na permanecer em seu silêncio auto-protetor, porque desesperançado, por temerem-na? Eu penso que analistas e pessoas de boa fé, mas sem argúcia, que não viabilizam o diálogo para a explicitação do cerco factual que engendra os monstros internos desta moça, estão, todos eles, a se defender do tamanho da encrenca da mesma. 

Existe outra maneira simplória de se trabalhar a coisa toda. Podemos dizer assim: 

“Nêmesis impõe a Narciso o sofrimento de apaixonar-se pela própria imagem”. Sejamos mais significativos: a negligência e/ou a violência parental-ambiental obrigam “Narciso” a encolher-se e a se debruçar sobre si mesmo, a ter de cuidar de si [num ambiente secreto e não-comunicado] no lugar de pai, mãe, escola, Igreja, hospital que deveriam saber cuidar deste sujeito em formação. Eis a questão, sem as linhas demasiado simplificadas da narrativa mítica. Vamos explicitar ainda melhor este tal “enamoramento por si mesmo”, característico de Narciso. As conjunturas parentais-ambientais [familiares, sócio-educacionais, institucionais] empurraram Narciso para esta “inviolável sala de espelhos”, a este assim-chamado “amor por si” que é no fundo: “zelo por si” e “desespero por si”, ao mesmo tempo, com todos os sentimentos subsidiários a tal desconfortável amálgama: “ a saudade de si mesmo” [ou “nostalgia pelas possibilidades perdidas e não-vividas de si mesmo”] sendo  o mais notável desses sentimentos consequentes à posição narcísica. “Pesar por uma vida que poderia ter sido”. Isso é a parte maior do assim-chamado “ressentimento narcísico” e essa parte vem “antes da inveja”, senão cronológica,  axiologicamente; senão “na ordem do tempo”, certamente na “ordem da importância e valoração das coisas psíquicas”. Nisso reside o grande "ponto cego" kleiniano e freudiano [eu diria: uma península de cegueira conveniente]. Nisso também reside a percuciência de Fairbairn. 

Sim, há uma avidez originária em todo ser humano. Há inveja e tudo o mais. Há voracidade. Não nascemos anjos. Por incrível que pareça, até eu sei disso. Não proponho uma volta ingênua a Rousseau. O que ocorre, no caso da ferida narcísica, é que os sentimentos em pauta [e "esta pauta específica de sentimentos"] é sobredeterminada e modulada [no tônus e no quantum] pelos fatores externos apresentados. Eis o achado Fairbairniano, com o qual concordo. Se fizermos uma leitura não superficial da situação em jogo [a da ferida narcísica e seu corolário], veremos que a assunção da sobredeterminação e modulação das pulsões, no quantum e no tônus, a partir das conjunturas externas concretas, não desqualifica  a existência daquelas pulsões definidas pelos kleinianos [voracidade, inveja, avidez, desejo], mas delineariam com muito mais precisão a conjuntura psíquica na qual tal sujeito apreende a si mesmo, e que essa apreensão, ao contrário de ser "idiossincraticamente arbitrária" [ou genético-pulsional] tem seu quantum de legitimidade nas circunstâncias concretas de educação-formação deste sujeito. Ninguém desqualifica a fome, por exemplo. Mas podemos flagrar maneiras de fazer do alimento um prêmio ou um castigo, e encontramos essas possibilidades factuais em inúmeros casos de distúrbio alimentar. Assim como o ambiente pode manejar mal [com a melhor das boas intenções...] questões relacionadas à nutrição [psicologicamente, e não só nutricionalmente, friso], o ambiente também pode confiscar o espaço existencial da criança. O termo é este: confisco.

Alguns dizem assim [numa leitura pietista dos mitologemas]: "A Hybris, ou ultrapassagem do métron [a medida justa do humano] faz com que Nêmesis intervenha e imponha a Narciso o castigo de ter de ver-se e rever-se, mirar e admirar [sempre uma vez mais] a si mesmo, pelo orgulho de negar amor ao outro [Eco ou alguma outra ninfa de plantão]". Ora, o métron da criança [certa medida mínima de auto-expressão e autonomia] é massacrado e confiscado pelas autoridades adultas que deveriam ser guardiãs desta "justa medida", nestes casos. A não ser que se reescreva a história de Narciso para a primeira infância, ou que a sua mãe seja a própria Nêmesis, como a Cuca nas canções de ninar. A deslegitimação do métron [a justa medida do humano] na criança abusada, a deslegitimação [ou confisco] da autoridade do ver e do ser desta criança, tudo isso determina, sim, essa constelação específica de sentimentos e imagos do grande ferido narcísico. E esta quadro de referência, bastante doentio e distorcido, coopera para e corrobora a formatação de um sujeito trágico. E o que é um sujeito trágico? É aquele que formula de si para si questões muito fundas a respeito da "respirabilidade do mundo", da "exequibilidade da vida genuína", da "possibilidade de se ser quem se é no íntimo, e o que seja este íntimo, e como ele pode [ou não] conectar-se com o lá-fora", e todas essas perguntas muito fundas são todas feitas muito cedo, ainda que semi-articuladas, a princípio. O sujeito trágico é o propositor e formulador em primeira mão [não, ele "não precisa pegar nada disso de empréstimo" de ninguém...] daquelas perguntas tidas por "problemáticas", justamente por serem problematizadoras do seu entorno [de seu meio sócio-cultural, a partir do quintal de casa]. Além do que, o sujeito trágico será, necessariamente, um “bode expiatório” [o protagonista do canto Trágico], a vítima de um conluio de interesses e pontos cegos do maquinário institucional, que não encontra no bode nenhuma espécie de resistência que o impeça de expurgar sua sombra massiva e maciça, expurgando-o  e fazendo-o purgá-la por todos os que preferem se manter inconscientes desta mesma sombra. Essa posição de bode expiatório do sujeito trágico é factual e inequívoca, qualquer que seja a tentativa de banalizá-la, minimizá-la ou impessoalizá-la, quer seja fazendo tabula rasa das conjunturas histórico-factuais do indivíduo, quer seja com clichês míticos, quer seja com leituras hidráulicas [ou termodinâmicas] do dinamismo pulsional, tomado em clave autônoma, abstraindo-o das importantíssimas balizas ambientais. Não há sofisma ou balela que salve o sujeito trágico de sua tragédia.

O agudo Colin Wilson, em seu fecundo The Outsider, já apresentou a questão do "fora-de-lugar" [do Forasteiro, do Proscrito, do Sujeito que Olha o Mundo como que 'de Fora'] muito bem, em poucas palavras: “um sujeito que viu muito fundo, e cedo demais”. Pois bem, isso afugenta o ver raso dos adultos, inclusive. E estes, defensivamente, tentam “aplainar as inúmeras minudências incômodas do ver-viver destes sujeitos trágicos” com simplórias equações pulsionais ou mítico-pietistas, desonerando as nossas não tão brilhantes instituições de seus déficits culturais gritantes, e sobre-onerando o indivíduo [=a criança, a princípio, e sempre "a criança em cada adulto" ] por sua “infância atípica ou anormal”. Dou a isso o nome de “crime consensual”: o crime do consenso médio contra aquele cuja vivência precoce comporta um “quantum” de Tragédia que se quer negar, ou minimizar, coletivamente. Friso uma vez mais a palavra: coletivamente. O "muitos contra um" se repete também aqui, na "cultura oficial".

Não é à toa [e pode-se conferir nos livros dos autores da Psicologia do Self, de Kohut e colaboradores] que todo paciente narcísico, ao contrário do edipiano, se vê no seguinte dilema: 1) Sente que "tentar compartilhar seu mundo interno não é factível, não servirá para nada" [o que traz como desdobramento lógico o “silêncio” esquizoide"]; 2) Ou se vê compelido a contar milimetricamente tudo, meses e meses a fio, cada detalhe bizarro de cada uma de suas muitas desventuras, na esperança de ser “minimamente compreendido”, para início de conversa [como pré-condição para qualquer início de diálogo analítico minimamente eficaz]. Neste contexto, ações como: querer apresentar diários de fatos passados para o analista, mostrar fotos de períodos emblemáticos da vida, anotar memórias ou sentimentos ocorridos nos intervalos das sessões, não são “manobras defensivas” do analisando com o fim de “saturar” e “paralisar” o analista em sua possibilidade intrínseca de exercer minimamente o seu ofício [“asfixiando-o por acúmulo”]; antes, pelo contrário: trata-se de um apelo para que o outro [o interlocutor 'suposto-capaz'] atente para a peculiaridade, pormenores e nuances de sua situação. Situação esta que ele sabe, na própria pele, desde muito cedo, ser tida como bastante improvável, tóxica, sui generis ou "explosiva" pelos demais. O analista que não apreender essa demanda subjacente à alegada manobra de "saturação" estará reafirmando [e "reinstaurando"] o trauma da não-escuta e da recusa do ver o que aquele [o analisando] viu [e viveu] só, sem testemunhas.

Pausa para o leitor ir atrás de uma música. Mas não se anime muito: voltaremos à aridez deste ensaio, logo em seguida à sugestão. O leitor está convidado a prestar atenção à letra e melodia de Confortably Numb [“confortavelmente entorpecido”], do Pink Floyd. Veja-se o diálogo entre doutor e vítima entorpecida antes do primeiro solo de David Gilmour. Esta vítima fala da febre da infância, fala de não ser ele mesmo, das mãos inchando como balões [um dos sintomas psicofísicos de “desrealização”]. Não quero me deter na letra, mas sinalizar para o solo de David Gilmour após esta primeira parte narrativo-dialogal [pois são dois sujeitos que conversam]. Seria o solo “ornamental àquilo que o precede [no caso: a este diálogo]”? Não. O solo é "a expressão mais genuína [que o músico encontrou] do apelo condensado naquelas mesmas frases que o antecederam". É a reiteração da fala do “paciente”.  O solo é a condensação e a culminância do apelo. Espero que isto fique bastante claro na escuta atenta da canção, porque temos aqui um “analogon” bastante fiel às assim-chamadas “manobras” adotadas pelos feridos narcísicos em seus processos analíticos. Se ele foi mal-visto ou visto muito pouco desde lá detrás, ele só crê poder “começar a ser visto, se for visto nas minúcias”. "Quem não me apreende com justeza não me faz justiça". Esta máxima condensa muito bem a demanda narcísica. Isso não é tão difícil de entender, quando se quer olhar e se faz um esforço para isso. Da mesma maneira que, para o grande ferido, dar uma espiada no analista fora da sessão [estar na sala de espera em horário de outro paciente, por exemplo] costuma significar “testar a sobrevivência objetal do próprio analista” [“Ele continua ali? Ele ainda está vivo e 'funcionando' quando some do meu campo visual?”]; similarmente à criança que teme que a mãe suma ou morra [ou "deixe de existir"] quando fecha a porta de casa ou do banheiro. Há um desamparo latente neste gesto ["medo da morte do objeto, e do morte do próprio sujeito para o objeto/no objeto"], e não o impulso erótico-voyerístico que os mal-avisados atribuiríam a tais pacientes, aplicando-lhes [indevidamente] a tão popular clave edipiana na (in)compreensão deste gesto "transgressor".

Assim, se o paciente nos mostra um inventário de relatos e “compilações da infância” ele está nos dizendo “temo que a minha história, se permanecer sem testemunhas, será maior do que eu mesmo poderia digerir sozinho, e ela acabará por me engolir de vez, como, aliás, já me engoliu lá atrás”. Que tal o tônus do apelo? Voltem a David Gilmour, please. Co-movam-se. O solo é a melhor tradução do que estou dizendo aqui. 

Há outro viés defensivo para "os que não gostam de conceber o enredo trágico do grande ferido narcísico”. Imaginam que a “tragédia”, no sentido de “martírio” [“testemunhar sozinho uma verdade”] seja uma “manobra cristã por excelência, a serviço da culpabilização de todos” [os laicos, os que "não viram ou viveram o sagrado"]. Nada mais tolo e impróprio. As condições de mártir e de bode expiatório, distintas mas confluídas, que tão bem traduzem a posição de Cristo, são factíveis e arquetipicamente dadas, fora da moldura cristã. E aqui, paradoxalmente, saímos de qualquer pietismo raso para uma leitura de "constelações típicas" [como é o caso do Édipo, inclusive], como veremos a seguir.

Um certo paciente de James Grotstein, gravemente abusado durante toda a infância [não sexualmente, mas física e emocionalmente, como é regra geral entre os feridos narcísicos], sai de férias e se depara com a estátua de Cristo na Catedral de Sacré-Coeur em Paris. É uma estátua de Cristo sangrando. O paciente, naquela circunstância e ocasião, sente que precisa de Deus, não de psicanálise, e que sua inocência foi aviltada desde a infância. Ele a quer [inocência] de volta. Por sua vez, James Grotstein, também em férias, na Itália, contemplava a imagem da Pietà de Michelângelo e, silenciosamente, pegou-se e repetir pra si um versículo do Apocalipse: “Estes são os que vêm da grande tribulação, e levaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro.” [Apocalipse 7: 14]. Por ser um analista perspicaz e não defensivo quanto a símbolos religiosos, James Grotstein imediatamente associou sua vivência à evocação que o paciente fez de sua própria experiência do “Cristo ensanguentado”, procurando pelos elementos contratransferenciais que ali estariam implicados. E ele encontrou muita coisa valiosa nesta auto-perscrutação. Tudo isso é minudentemente exposto nos capítulos 8º e 9º de seu livro essencial [para nossos fins]: “Quem é O Sonhador Que Sonha o Sonho: Um Estudo de presenças Psíquicas”, já por mim citado em outras ocasiões. Curiosamente [mas não gratuitamente], tais capítulos se chamam:  “Por Que Édipo e não Cristo?, parte I e II”, e neles James Grotstein fala das vantagens de se tomar Cristo como paradigma para a análise da transferência com este tipo de paciente [frise-se: ele não é cristão], e de sua enorme vantagem em relação à adoção do Édipo como paradigma nestes casos específicos. Analisa, ainda, os preconceitos da psicanálise quanto a se tomar Cristo como arquétipo [e assim reconhece ser o Édipo também tomado, sem auto-crítica, nesta mesma condição arquetípica],  coisa que ele não reluta em fazer, mesmo não sendo “formalmente junguiano”. Para analistas rasos, tacanhos e empedernidos é uma aula toda a longa exposição que ali consta. Mas vou, simplesmente, sumarizar algumas de suas conclusões, acrescentando a elas observações próprias, como fiz no caso do vínculo Jó-Jeová [vide capítulo anterior]. O leitor interessado e/ou especialista [sobretudo os psicanalistas que sentem alergia diante do citado acima, são convidados a visitar o belo trabalho de James Grotstein; um tour de force, na minha opinião].

Tendo vislumbrado que a conjunção de imagens Cristo Ensanguentado-Pietà apontava para fenômenos analíticos [entenda-se: a dita conjunção-constelação apontava para fenônemos transferenciais-contratransferenciais] ocorridos no setting com aquele paciente específico,  James Grotstein rastreia seus sentimentos clínicos em relação àquele paciente [transferências especulares ou complementares, segundo os vértices contratransferenciais já apontados por Racker e reafirmados por Kohut e Jacoby, dentre outros], ora como Cristo [identificando-se projetivamente com o papel de Mártir do paciente], ora como Maria [identificando-se com o papel complementar ao do paciente, como "testemunha impotente de sua situação e que concorrera passivamente para sua ocorrência"]. Este exercício heterodoxo fez com que Grotstein apreendesse a dupla situação [face e contraface, verso e avesso] da complexa condição de seu paciente abusado:

1) A condição de Cristo: o que vive um sofrimento silencioso e subcompreendido [Cristo transpira sangue no Horto e seus amigos dormem...], tal qual, em sua infância, o paciente se experimentou, simultaneamente, abusado e negligenciado quanto à solidariedade e/ou socorro aos danos a ele impetrados pelos ambientes primários; 

2) A condição de Maria [ou da passividade dos ambientes primários quanto aos abusos sofridos], como co-responsável por tais sofrimentos. A explicação simplificada [icônica] seria esta: Maria dá à luz um filho para sofrer e ser martirizado; sacrificado, enfim; o analista, ouvindo mal a história do paciente [e fica claro o quanto James Grotstein ouvia mal tal paciente, antes deste insight!], com ou sem dolo [=Maria], mas com inépcia,  acaba por reevocar os sofrimentos do paciente no processo regressivo implicado em toda análise [reevocação da experiência infantil], ao mesmo tempo “obrigando o paciente a revivê-los transferencialmente” e "se mostrando incapaz de lhe oferecer socorro efetivo". [A Pietà tem nos braços o filho já morto...]. Eis os dois lugares/posições nos quais James Grotstein se viu na sua perscrutação dos sentimentos transferenciais ali vividos. E isso permitiu a ele entender melhor tanto o paciente, quanto um trabalho que ele lera muitos anos antes, de Kubie e Israel (1955). [Como o trabalho está ali citado, não irei alongar desnecessariamente a bibliografia deste ensaio]. Também pôde entender melhor alguns aspectos contratransferenciais explicitados no "Bion da última fase" [de produção criativa], o Bion dos apontamentos clínicos, rubricas e fragmentos compilados na obra "Cogitações", trabalho este que Franco Borgogno compara ao Diário Clínico de Ferenczi, pela franqueza desassombrada e pela escolha da fidedignidade clínica acima de qualquer rigidez conceitual ou "dogma". O Bion menos autoritário, menos dogmático e mais experimental-cogitativo estaria nesta coletânea. Franco Borgogno estudou tal conjunto de insights clínicos do Bion tardio com a filha deste, Parthenope Bion Talamo. O registro de suas conclusões a respeito está no sétimo capítulo de seu livro "Psicanálise como Percurso" [2004; Rio de janeiro: Imago], já citado no prólogo deste trabalho.

Assim, vamos examinar, por ora, e em conjunto, os insights de James Grotstein e tentar apreender o quadro que eles compõem.

Antes de adentrar a visão de conjunto que exporei logo abaixo, volto ao solo de guitarra de David Gilmour. “Qual o objetivo daquele solo de guitarra, naquele contexto?” Ou, em termos análogos: “Qual o quantum e o tônus expressivo daquele solo naquele contexto específico?” A percepção analítica dos sentimentos transferenciais-contratransferenciais também é da ordem da percepção “estético-vincular”, ou “expressivo-vincular”, como a irrupção de um solo de guitarra [portanto, sem sem palavras] que está ali confirmando diálogos já ocorridos, e antecipando diálogos futuros.

Uma criança, completamente perplexa e muda [dir-se-ia, popularmente, “apoplética”, no sentido do estupor e pasmo que então manifestava] é apresentada a uma grande sala de reuniões de psiquiatras, num prestigiado hospital europeu, na década de cinquenta. O Dr. Lawrence Kubie tem uma intuição notável [na verdade um “sentimento contratransferencial”] em relação ao estado daquela criança, e lhe diz: “Eu sinto muito pelo que te aconteceu! Eu sinto muito mesmo!” Saindo de seu estupor, e após se dirigir a cada membro da plateia, pedindo a cada um que repetisse: “Diga que você [também] sente muito!”, essa criança começou a falar... A expressa manifestação do dano impetrado á criança por alguém, e a piedade do psiquiatra por tal condição, "liberou" a menina para o diálogo, pós-reconhecimento. O reconhecimento do dano é uma parte importante do diálogo. Pode ser até pré-condição para o mesmo.

Uma leitura mais rasa do ressentimento, que o entende na clave edípica, considera este sentimento como de “apego ao dano”, ignorando que é difícil abandonar aquilo que todos negam existir ou ter um dia existido! Lembro-me de assitir a um documentário onde um ex-prisioneiro de guerra, um americano, contara ao pai que ele e seus companheiros de prisão eram obrigados a cavar um túnel e quebrar pedras com o fim único de se exaurirem, sem água e alimentação adequadas para, em seguida, recolocarem as pedras no túnel cavado, para voltar a removê-las na jornada seguinte de "trabalhos forçados". Neste exercício insano [na verdade, uma engenhosa tortura, física e psíquica], não se visava nada de prático, senão drenar as forças dos presos que iam, assim, sucumbindo como moscas presas numa teia. O pai deste prisioneiro não pôde acreditar nesta parte do relato do filho [parte extremamente substancial, para aquele que viveu algo sem sentido e gratuito; entenda-se: sádico]. Quando este ex-prisioneiro pôde voltar ao campo de concentração com seu filho [seu pai já estava morto] e mostrou-lhe o tal túnel, o reconhecimento espantado do filho daquele fato por ele narrado havia anos, fez com que ele desabasse num choro convulsivo de longa duração. Ele chorava pela necessidade de reconhecimento factual de um absurdo que lhe havia sido imposto. E mais: aliviava-se, por procuração, da incredulidade do pai quanto ao fato, pelo olhar cúmplice do filho! Eis algo muito básico que escapa aos olhos daqueles que não sofreram uma infância torturada, ou qualquer tortura ao longo da vida. O reconhecimento da tortura é um pressuposto para se poder seguir em frente, apesar dela. Quem lê o ressentimento pela clave do "apego ao dano" como "escolha em cultivar a memória do dano" [como que aninhando-o no colo, por mero capricho ou "auto-erotismo indulgente"] nada sabe do que é dito aqui. Tais pessoas ainda supõem que os "apegados ao dano" esperam dos demais que eles “sintam sua dor”, “que sintam por eles”,  como um corolário de seu gozo auto-indulgente [eles quereriam ser valorizados por terem sofrido, como quem ganha uma medalha de Honra ao Mérito]. Quanta puerilidade! Os que desconhecem a infância torturada, não compreendem na demanda deste ex-prisioneiro de guerra, bem como na da garotinha do exemplo de Kubie, uma “função expressiva”. Trata-se, enfim, de uma demanda por comunicação: "Alguém, agora, consegue imaginar o que eu vi e vivi, sem que, até então, pudessem sequer cogitar o que fosse?!" Eis a pergunta implícita na demanda. Por isso, ex-prisioneiros de guerra se encontram para reatualizar a rememoração catártica do dano. Para reafirmar a testemunha, mais do que o dano. Porque a existência da testemunha requalifica o dano como "menos enlouquecedor", na medida mesma em que torna o dano comunicável e, portanto, "crível". E quando não há sobreviventes ou cúmplices no dano? E se se sofreu o dano sozinho? E se, em lugar de ex-prisioneiros, só houvesse nazistas dizendo: "Não, não foi nada disso, vocês foram muito bem tratados ali"? Quem fala de "apego ao dano" não consegue reconhecer que aquele que espera o reconhecimento do dano precisa comunicar a dor de sua história guardada sem testemunha, para poder avançar acompanhado da comunidade humana. Do contrário, ele fica alijado do reino dos vivos, ou do reino do "crível". Ele terá de permanecer anônimo para existir, como fora até então. Não é paradoxal? Não é cruel, além de paradoxal? “Comunicar a dor” é exatamente a função da transferência, na releitura que Donald Meltzer faz de Melanie Klein. Olhar a função da comunicação do dano como busca de testemunha para algo ignorado [ou sadicamente impingido e negligenciado lá atrás] é uma tentativa de reinserir-se na comunidade dos vivos, reinserindo alguns de seus indizíveis nesta mesma comunidade; pois foram justamente tais indizíveis que alijaram o sujeito trágico dela! Esta perspectiva é bem distinta [e distante] de qualquer “função revanchista” ou de “gozo triunfalista" em "impingir sobre os demais a sua dor pretérita". A ênfase é outra: é tornar manifestável, comunicável, algo que foi compelido a ficar numa zona secreta [e demoníaca] do impronunciável, porque não-crível, porque não "adequado" aos pudores sociais, porque "não consentâneo" com a respeitabilidade familiar, porque aviltante para a reputação de alguma instituição que preza mais o verniz da imagem do que os fatos [vide a necessidade de reconhecimento por parte das crianças abusadas por sacerdotes católicos na Irlanda], e por aí vai. O buraco é mais embaixo. A função revanchista é a manifestação reativa [e posterior, portanto] da“frustração da função expressiva”. A menina torturada pela Sílvia Calabresi [citada no capítulo anterior], teve sua dor e dano assumidos e expostos publicamente e, assim, pôde ver o reconhecimento e solidariedade do olhar de muitos para aquilo que os filhos adultos [de 20 e 21 anos, à época] e a empregada da torturadora fingiam não existir. Assim, e só por isso, ela pôde escapar do circuito da conivência e cegueira daqueles que, por opção, deliberaram não ver e se omitiram em ajudá-la ou foram "incapazes de sentir por ela, e de sentir com ela". Isso ocorre com todas as vítimas de abusos pesados. Se o pai tortura e a mãe fica quieta, ela fingiu que não houve nada, e não "sentiu com ela, nem por ela". Se a criança foi abusada na escola, e ninguém a defendeu, os que viram "não sentiram a dor dela" ou, pior "rira da dor dela" [gozaram, eles, com o dano a ela!]. É o mesmo que uma adolescente ser filmada num estupro e o vídeo ser exposto como troféu na web. Se acham graça de sua vitimização, mas o rosto do estuprador fica anônimo [nublado por efeitos especiais], se o cara que filmou e nada fez fica no anonimato, tripudia-se coletivamente de sua dor, como troféu alheio. A questão do reconhecimento é uma questão de justiça, e nada tem a ver com caprichos ou revanchismos. Aliás, muito mais crível e provável que a menina torturada pela Sílvia Calabresi supere seu percurso com sua algoz. Ela já deu sinais disso, agradecida por ser "libertada de sua situação" [agora tornada visível a todos, e com o nome certo: devidamente nomeada]. Pior seria continuar a se ver naquilo com a anuência dos irmãos adultos, os filhos biológicos da torturadora, que estariam a dizer á criança, com a atitude [senão com palavras]: "O que nossa mãe faz é lícito. tem nossa anuência. tem nossa adesão. Não há erro algum aqui. Não existe vítima, nem vitimizador!" O que se fez, neste caso, foi desarmar a terrível armadilha do discurso que nega [e, negando, valida!] a tortura, e por isso tenho certeza que tal moça conseguirá superar o dano, sem revanchismos. O rapaz de Realengo que matou as crianças na escola, reencenou seu abuso ignorado. Achar que a demanda originária do ferido seja a do rapaz de Realengo é “saltar a etapa da possibilidade de reparação relativa aspirada pela filha adotiva de Goiânia”. Entendam o raciocínio, por favor, porque ele é crucial. Bion, em suas Cogitações, diz o mesmo, em outras palavras: “O paciente só aceitará uma interpretação após sentir que o analista atravessou o sofrimento implicado [ou embutido] naquela interpretação”. Eis o espírito da coisa, para o grande ferido narcísico. A fala específica de Wilfred Bion, referindo-se sobretudo a pacientes psicóticos ou borderlines [os grandes feridos narcísicos, em suma],  é como segue, tal qual reproduzida na obra de Grotstein, com itálicos do próprio Grotstein [tal a importância que ele dá à frase]:

"Não penso que tais pacientes [ou seja: psicóticos e borderlines] aceitarão uma interpretação, embora correta, a menos que eles sintam que o analista passou pela sua crise emocional, como uma parte do ato de dar a interpretação” [Pag 321 do livro de Grotestein].

Passar pela crise emocional experimentada pelo próprio paciente [vicariamente, por identificação projetiva com as partes que lhe foram negadas desde a triste infância] é parte inerente e essencial do ato mesmo de interpretar um conteúdo [conteúdo-sentimento, sobretudo] para um paciente que tenha passado por este tipo de trajetória trágica. Isso é “sadismo” por parte do paciente? Na origem, não. Na origem, isso visa comunicar uma dor. Visa comunicar algo, como o solo de guitarra de David Gilmour. Frustrada esta tentativa de comunicação, podemos ter os atos comunicativos-sádicos-destrutivos-suicidas, como os do coreano da Virgínia, ou do rapaz de Realengo. Tomar o “sadismo” desde a origem é negar á dor o direito de tentar expressar-se com a maior fidedignidade possível. É fechar o diário que o paciente entrega no consultório. É tapar os ouvidos aos seus sonhos bizarros e relatos de uma infância atipicamente infeliz. É colocar rolhas nos ouvidos nos vinte segundos que David Gilmour tem algo a reiterar, com seu solo além-palavras. 

Aceitar os demônios do paciente, para posterior exorcismo, são os termos adotados pelo próprio James Grotstein ao falar deste tipo de paciente. E estamos lidando com um analista de vanguarda [dos que trabalham com paradigmas novos, semelhantemente a Thomas Ogden, que prefacia seu livro], e não com um medievalista nostálgico por ritos e obscuridades. Experimentar-se como Crucificado Impotente ou Madona [Também Impotente] das Lágrimas, são duas posições que viabilizaram a extensa expressão dos danos e das presenças internas que os perpetuavam [os "demônios", em questão]. Neste contexto de entendimento para-além-do-Édipo, a exclamação típica dos grandes feridos narcísicos, exemplificada pelo paciente, faz [e fez, para Grotstein] todo o sentido do mundo: “Por que aquelas pessoas imaturas e egoístas me tiveram? Como se atreveram a ter filhos? Por que me impuseram um nascimento?” Isso faz eco ao “eu quero morrer, quero morrer”, (d)estampado no choro da paciente citada no capítulo III, “Tempo Fechado Para o ferido Narcísico”, frente às fotografias da infância, quando se sentiu tendo uma “infância anônima e incomunicada”. Esta infância não pode mais ficar anônima, nem incomunicada. Eis a questão. Eis uma das tarefas do analista a receber um paciente esquizoide ou borderline. O ressentimento visto na clave do melodrama do Anjo Vingador da Morte, como nos filmes de justiceiros de Hollywood, é o “fracasso dessa tentativa expressiva”, em seu primeiro momento. Maria Rita Kehl, em obra citada na bibliografia para este capítulo, mostra uma compreensão do aspecto narcísico-revanchista e de gozo auto-indulgente [eximindo-se da responsabilidade de crescer] por parte do grande ferido, assumindo, sem se dar conta, a postura rasa de outros filmes americanos, onde alguém, "heroicamente", engole seus segredos sem por eles ser engolido, jamais, e vive com os seus pares ignorando as dores da alma. Esse tipo de personagem: ou é super-herói; ou se afoga em bebidas. Gosto muito de Maria Rita Kehl, mas fica claro que nosso grupo amostral de pacientes é muito distinto. Mas muito mesmo. 

Haveria alguma coisa a dizer a respeito da suposta “violação da inocência” de tal paciente na infância. Já disse que, não há anjos nascidos neste solo terreno, não há ninguém sem qualquer laivo de agressividade, inveja, ou competição, desde a infância. Claro que não há! Até porque, são crianças a impingir danos a outras crianças ["muitas contra uma"], no clássico bullying escolar. O riso que os aleijados despertam, a crítica aos corcundas, aos portadores de deficiências de quaisquer espécies, a proscrição a que se destinam pobres, "feios", caolhos, alguém com lábio leporino, etc, etc, etc, aquele cujo pai não tem posses ou modos ou força, conforme o contexto, cuja mãe é velha ou "falada", conforme o contexto, etc, etc, isso mostra que o mundo infantil desconhece "anjos". Mas conhece agressores contumazes e não-agressores. Conhece aquele que exercita o infringir danos  e os que não o fazem, mesmo tendo oportunidade para tal. Sem entrar numa discussão de todas as variáveis co-dependentes na formação de crianças e jovens, temos de considerar mais-que-legítima e compreensível a queixa de “violação de inocência” em praticamente todos os casos de pacientes esquizóides e borderlines. Costuma ser massiva e maciça a invasão, nesses casos. Confira-se as situações citadas no capítulo anterior, esta descrita acima, ou a de uma menina de três anos cujo pai morre eletrocutado em seu exercício profissional [em manutenção de redes da prefeitura], sua mãe tem eclâmpsia e morre dando à luz sua irmãzinha, poucos meses depois da morte do pai, e ela é estuprada pelo irmão da mãe recém-falecida, com esta mesma idade de três anos, após esta sucessão de perdas. A avó tenta acobertar o crime [avó em questão: mãe da mãe e do tio abusador], alegando, na chegada ao hospital [Frise-se: criança com ruptura de períneo em decorrência do estupro], que a menina “caíra de mau jeito no peniquinho” [sic]. Falamos de tragédias, portanto. Não falamos de “contratempos familiares médios”, em nenhum dos casos. Em linhas gerais, estava certo o insight dos antipsiquiatras [Ronald Laing, Thomas Szasz, David Cooper, Silvano Arieti] ao entenderem que o paciente esquizofrênico, em média e regra geral, era o membro-alvo [entenda-se: o bode expiatório e o porta-voz doente] de uma doença familiar [=de uma família doente] e/ou de uma doença institucional. Em todos os casos a que estou aludindo, isto pode ser aplicado, ainda que não se trate de esquizofrênicos.

Peguem o caso citado por mim, a vinheta clínica da paciente do capítulo XIII, que eu chamei de “Soraya” [“O Códice do Silêncio”]. Ela é apunhalada [literalmente] pela mãe que lhe diz que ela é um fardo, e que maldita fora a hora que ela ficara grávida e fora obrigada a casar com um bêbado. A mãe não a queria nascida. O paciente de Grotstein, e que tanto o impactou com sua pergunta, complementa a dor de minha paciente [apresenta o reverso exato da afirmação da mãe de minha paciente]: “Porque me tiveram, então?!”  Essa pergunta é narcísica. É pré-edipiana. Louvo a transparência de Grotstein em compartilhar em voz alta suas reflexões heterodoxas, sobretudo para a consulta dos que só leem autores que se referem a seus mesmos mentores intelectuais. Ele lista mais de 400 livros em sua bibliografia.

Vamos à seguinte situação: o paciente pede para falar comigo, durante as sessões, numa língua que entendo bem, mas que não falo com fluência. O paciente é brasileiro, e não está em questão “ele não entender a nossa língua pátria”. Quererá o paciente [ou analisando] me colocar, sadicamente, na posição do “ainda-sem-fala” [do infante, portanto], disputando edipianamente comigo algum lugar de suposto saber ou suposto poder? Não. O paciente quer me comunicar que se sente mais ele mesmo como estrangeiro. Minha reação, após ouvi-lo, é de imaginá-lo “melhor encaixado como turista na vida”.

Ao longo das sessões, ele me conta como se sentiu bem recebido nos lugares por onde “passou um tempo”. Conta-me o hábito das longas caminhadas sozinho, tendo nas lojas de conveniência [estas de posto de gasolina] uma espécie de “oásis”: locais onde se sentava, bebia alguma coisa e "ouvia pessoas conversando". O paciente me conta de sua infância, de quando seu pai se irritava e exigia-lhe que fizesse algo, sem escolhas, punindo-o pelo que ele mesmo fizera! Vários exemplos foram dados. Havia uma consequência inesperada ao pedido do pai pelo próprio pai, e este punia o menino uma segunda vez, mesmo este já antevendo que a exigência do pai "implicaria no risco de uma má consequência". "É difícil de explicar", ele me dizia. Citou dezenas de situações. Exemplo: o cachorro do menino entra debaixo do sofá, irritando o pai que, aos berros e ameaçadoramente ["vou te tirar este cachorro! Vou dar este cachorro pra fulano de tal!"] exige do menino que o tire "imediatamente" dali. O cachorro se assusta pela pressa, pelo jeito desastrado e imediato com que a criança é compelida a arrancá-lo dali, e acaba mordendo a mão do menino. O pai lhe dá uma surra e consegue que sacrifiquem o cachorro, com a história que inventa sobre "a agressão gratuita do cachorro à criança" [uma mentira, portanto], como se ele mesmo não a tivesse provocado. Ele resumia as coisas assim: "meu pai poderia ser comparado a um radiologista muitíssimo autoritário que obrigasse um paciente a se posicionar sentado, com a máquina incidindo-lhe nos olhos, alegando precisar tirar uma radiografia do pé deste paciente. A qualquer reclamação, ele insistiria: 'quem é o médico aqui?' Se a pessoa ficasse com catarata ou qualquer doença ocular pela insistência despropositada de meu pai, ele puniria aquele que ficou com catarata, esquecendo seu papel na situação toda." Contou-me de como era magro, pesando 36 quilos aos quatorze anos [hipertireoidismo], tendo 1,65 de altura, e como isso despertava agressões de colegas. De como seu pai não lhe permitia fazer exercícios “para não fazer mal ao coração”. De como, tendo tido uma doença na infância [hepatite], ficou de “castigo provisório” até o final do ano letivo, tendo de acompanhar o pai ao seu escritório e estudar [inclusive nas férias escolares] para “não se acostumar com a moleza da folga às aulas” [moleza esta causada por sua doença, e não por sua escolha!]. Inúmeros castigos desta natureza eram regra em sua educação, além de situações onde tomava a defesa de um ou outro parente [mãe ou irmãos], e era punido por afrontar a autoridade paterna. Se o pai derrubasse algo na cozinha e obrigasse a mulher ou um irmão a "a arrumar a bagunça" [um copo quebrado pelo próprio pai], e ele exclamasse: "Mas foi você que deixou cair, pai!", tomava uma surra por ter declarado o óbvio, tinha que catar tudo no lugar da pessoa instada a fazê-lo antes de sua defesa, e ele ficava de castigo apesar de já lhe ter sido imposto a arbitrariedade que ele mesmo contestara em relação a outrem. Eis uma situação sem nehuma justiça. Não havia privacidade consentida: não se podia fechar qualquer porta de quarto ou banheiro. O menino não faria exercícios se o pai não os aprovasse antes, não iria ao médico se o pedido do menino lhe parecesse caprichoso, não faria nada sem que a intenção do ato parecesse vir do próprio pai, e não daquele que solicitasse algo de que precisasse. Ele me contou de como se sentiu "irremediavelmente lesado"  aos dezessete anos [a dor da ferida irremediável é uma das facetas dos feridos narcísicos], sentindo palpitações intensas na ocasião, não conseguindo dormir, lembrando-se de sua infância, e de como teve de sair de casa logo depois, aos dezoito, tendo de brigar com seu pai para não ser internado por ele, pai, numa clínica psiquiátrica. De como deu aulas de línguas [eis o valor de se falar "outra língua"!] para se manter, enquanto morava no quarto alugado de uma viúva, e fazia faculdade. De como passou anos sem voltar a falar com o pai, e este nunca reconhecera um erro sequer. De como perdera a noção do tempo, e não se lembrava de quase nada daqueles semestres subsequentes à saída de casa: o nome de seus colegas de faculdade [cursava Letras], professores; dormia pouco, “vagava como um zumbi”. As aulas particulares eram seu “prumo”. De como saíra da faculdade, por perder o prazo de inscrição para o quarto semestre, após concluir [satisfatoriamente, segundo seu relato] os três primeiros, mesmo não  guardando lembranças do convívio com o ambiente estudantil. Era como andar no automático, dizia ele, ou estar num estado de sonâmbulo. De como escondia dos outros [por vergonha] essa perda de prazo, e que por isso não lhe ocorrera voltar à faculdade no semestre seguinte. De como essa solidão se instalara nele, e este “observar as coisas de fora, como ouvir as conversas nas lojas de conveniência, 'só o som, só a presença' estava instalado nele". De como fora recebido bem, por duas vezes, em viagens baratas de mochileiros, em países nos quais falavam as línguas que ele dominava. Não cultivou essas amizades também; "só ali" [só na ocasião e naquele contexto de viagem]. Mas que era bom, “também porque ele sabia que estava de passagem”, “em trânsito”. Este pedido para “falar numa língua estrangeira comigo” ganha conotação bastante diversa da competição pelo poder [pelo lugar de "suposto saber" ou "de poder mais do que eu"] se lida no contexto todo que agora expus.

Outro paciente, me traz como primeiro sonho ter sido abraçado por uma “tiazinha gorda” num campo aberto e isolado [cifra: uma terra devastada], após o que [ato contínuo], a “tiazinha” lhe diz: “Tem uma encruzilhada dentro de você”; ao que ele responde, com uma pergunta: “E como é que eu tiro essa zica de dentro de mim?” A tiazinha ri e o solta do abraço. Ele encontra uns pássaros perdidos ciscando na terra [devastada], sem nada pra comer, e tenta impulsionar-lhes o voo, de forma infrutífera: esses pássaros parecem "tão inábeis ao voo quanto as galinhas".

Fico pensando na tia da encruzilhada. Me vem a imagem de uma cafetina ou dona de boca de fumo. Mas fico calado. Pergunto por alguma “tia das esquinas”. Dona de boca de pó, ele me conta. O rapaz tem faltado ao banco onde trabalha depois de cheirar cocaína nos finais de semana, quando não dorme [cifra: “fôlego de curta duração”, como os pássaros que não alçam voo no sonho]. Faço algumas pontuações interpretativas a partir das imagens contratransferenciais. Um dos sonhos subsequentes mostra o paciente [bem jovem, como se deduz pelo linguajar] "correndo como um louco pelas ruas, com uma moça louca varrida atrás dele, uma estranha, moradora de rua. Ele carrega uma pasta de executivo, de marca. Uma pasta que é símbolo de status. Chega a um lugar onde o pai de uma namorada alimenta pombos". Aqui temos o símbolo do fôlego [pombo como fôlego, uma evolução ou “giro” da imagem anterior] sendo alimentado de forma mais produtiva [não "ciscando no deserto"], mas num contexto difícil: ele está numa “maratona” [="quase sem fôlego"] e fugindo de alguém [se antes, algo o prendia na encruzilhada, ou lhe anunciava a encruzilhada na qual estava preso, agora esta presença ou este algo vagueava pelas rua: podia percorrer todas as encruzilhadas]. Vemos uma figura masculina mais velha que pode dar suporte a um “fôlego legítimo” [chamo a este “élan vital”, animus, contrariando Jung em sua leitura contrassexual do termo, e entendendo-o etimologicamente: animus= ânimo, fôlego; poderia chamá-lo “spiritus”, “ignis”, ou “fator yang”, tanto faz; não uso tais terminologias com o paciente; elas só servem como uma notação para mim mesmo]. Comunicando ao paciente sobre a presença de algum valor positivo em um homem mais velho [e não me vendo colocado neste lugar, na conjuntura transferencial da ocasião], ele elogia o pai de uma ex-namorada que o ajudara a “ficar no eixo, por um tempo". Isso o fez me contar do quanto seu pai ficava largado, tantas vezes bêbado em frente à sua casa, e sua mãe fazia discursos desconexos sobre o Apocalipse enquanto cozinhava, “temendo que o fogão e o botijão explodissem”. Que fora expulso da Assembleia de Deus publicamente, como não é raro ocorrer diante de certas faltas dos membros daquela congregação. De como fora humilhado no exército, por trapalhadas relativas a seu modo de apresentação [uniforme, "falta de compostura", barba mal-feita, horário], sendo também expulso de lá. Vejo a moça louca como uma parte internalizada da voz que azucrina a jornada do jovem com falas quase ininteligíveis [como sua mãe recitava trechos do Apocalipse, trazendo a iminência da hecatombe para tão perto do filho e dela: ali mesmo, no fogão]. E os símbolos progridem [ou “giram”], à medida que a terapia avança e que uma vida de “vergonha e humilhação pública” surge à tona, ao meu olhar que co-testemunha cada lance inóspito ou "cabuloso" [segundo seus próprios termos], ao lado das encruzilhadas e donas de bocas: o local dos proscritos [tal qual o  pai na sarjeta, ou a mãe em solilóquios paranóico-religiosos]. O reconhecimento de cada uma dessas nuances permite ao rapaz avançar, e muito, em seu “percurso” e em seu “fôlego legítimo” [não mais aquele emprestado da cocaína...].

Nêmesis impõe a Narciso o sofrimento de apaixonar-se pela própria imagem”. Qual foi o métron [a justa medida do humano] que o "herói” violou? Quando alguém se vê confinado a poucos metros quadrados existenciais desde a infância, a tentativa de sair do círculo soará como “roubo de espaço” ou saque, nos moldes dos saques e rapinagens do povo eleito a caminho da Terra Prometida. Pode haver culpa, ufanismo, uma labilidade entre ambos [ao modo de Jeová],  um sentimento de distância em relação ao próprio destino [“confisco de autoridade”, “alienação”, “humilhação pública e vergonha”], nostalgia [“por aquilo que poderia ter sido": “inserção em casa, na igreja, no exército, no banco, no apoio do pai de uma antiga namorada...”, ou na droga e na companhia de outros proscritos], ressentimento/raiva [“por não ter sido como poderia”], etc, etc. Mas todos esses sentimentos partem desta distância: “Ser-Imagem”, “Ser-Saber que é Visto com Justiça desde Cedo”. A criança, originariamente, não violou o métron: teve seu métron [ou “justa medida”] invadido, exposto e ridicularizado, ambientalmente [as falas apocalípticas da mãe eram assustadoras; as chacotas sobre o pai incapaz de se posicionar eram esmagadoras; as expulsões ritualísticas, tanto da igreja quanto do exército marcam, “cerimoniosamente” sua não-inscrição nos espaços oficiais; isso é "ridicularização pública"; "tiraram comigo grandão", dizia o jovem]. A justiça das distâncias [Nêmesis] parece se opor àquela que permitiria a assunção da própria voz, a consolidação de uma imagem clara de si mesmo [nos vínculos primários], um senso razoavelmente “incorporado” de foco, meta, finalidade. Lembremo-nos: “O Exílio gera devaneios. Mas o Exílio em si mesmo não é um devaneio”. Pois bem, a tal justiça incorporada, que viabilizaria uma razoável auto-regulação [o “atribuir pesos ao fiel de uma balança fidedigna”, que não a balança da droga que anestesia...] seria Themis, na mitologia grega, um desdobramento evolutivo da punitiva e arbitrária Nêmesis. Um “giro” ou “avanço” na imagem daquela. Esta justiça não está disponível no arcabouço biográfico do sujeito, mas se deixa entrever em seu arcabouço imaginal, alinhavado na transferência e no trabalho de elaboração simbólica. Assim, ele sai daquele patamar, para alcançar um outro. A balança de peso da compra de drogas é um parco simulacro da pesagem de consciência que Themis epitomiza.

Aqui, no caso sumariamente apresentado, há questões edipianas, claramente visíveis [afinal, "pai e mãe sempre falarão ao fundo do quintal de nossas casas psíquicas”, isso é inevitável.. .]. Mas a coloração da dor e da queixa é narcísica. Num contexto assim, quando o “ser” e o “senso de justiça” é “marcado pelas distâncias” [todas aquelas a que aludi acima], não há auto-regulação possível. Não há “equilíbrio narcísico da auto-imagem” [“ideal de ego”, planos claros, focos, metas, proposições de médio prazo]; há adicções [“fôlegos falsos que viabilizam a tomada de empréstimo de algum sentimento de vitalidade e/ou pertença” – mesmo que seja “pertença ritualística entre excluídos"], há pulsões a serviço da consolidação de fronteiras egóicas [“exponho-me ao perigo para me sentir vivo”, “converso com os bêbados da madrugada, para fazer do bar a minha casa”], ou coisas que tais. Isso equivale a dizer: Themis não está presente. Mesmo a sexualidade está a serviço de “tentar manter aparentemente coesas as frágeis fronteiras do self” [o de “sentir-se inteiro” e /ou “sentir-se sendo real, pegando carona no prazer para isso”]. 

Eis a descrição sumária de alguns pacientes narcísicos, que espero ser ilustrativa de algumas de suas peculiaridades. Todos os que trabalham com clínica sabem das dificuldades inerentes à exposição casuística demasiado detalhada de analisandos, uma vez que devemos preservá-los de qualquer identificação mais precisa, sob risco de quebrarmos a regra do sigilo. Por isso mesmo, eu me dou por satisfeito sumarizando ao leitor mais atento as pistas suficientes para a apreensão do essencial do que aqui pretendo expor.

No capítulo anterior, servi-me de Álvaro Ancona de Faria, e vale a pena repetir algo do que ele diz. O borderline [estes dois últimos pacientes são francamente borderlines] procura o anonimato. Ele não quer chamar a atenção para si [quão distante é a ferida narcísica profunda do “auto-exibicionismo” dos Big Brothers da Vida]. Vou transcrever aqui alguns de seus parágrafos, para que o leitor não precise voltar àquele capítulo:

"[...] o que vemos é um estado de privação afetiva permanente, onde a negligência em relação aos cuidados requeridos pela criança é o que está presente de modo mais significativo, por vezes acompanhada até de uma certa crueldade.

Como representação na experiência subjetiva destes indivíduos de todos estes fenômenos poderíamos usar o termo incontinência [itálico do autor]. Os pais ou cuidadores deste paciente não puderam dar continência às dificuldades pelas quais passou este indivíduo; do mesmo modo tampouco.

A sensação que o indivíduo tem, a partir daí, é que deve  permanecer o mais desapercebido possível, pois tudo que vem dele causa problemas: se por um lado suas dificuldades não geram empatia em seus pais, trazendo como resposta algo como “não me traga mais problemas que já os tenho bastante”, por outro lado parece que suas qualidades ou sucesso trazem aos pais uma inveja destrutiva.

O indivíduo aprende então que não deve fazer revelações de si mesmo, e que fazê-las traz só desapontamento e dor (Charlton, 1988). Constrói uma forte convicção de que as pessoas não são seguras e que estão interessadas somente nas próprias gratificações (Silk, 1995). Conclui que elas não são fidedignas, não podem ajudar e são inconsistentes, gerando uma expectativa de não confiança no outro (Livesley, 2000).

O mundo parece ser um lugar aterrorizador. A experiência que ele ofereceu para estes indivíduos é de vivência e proximidade exclusivamente com o numinoso negativo. [...]” (p. 36-38, op. cit.)

Pois bem: o indivíduo precisa confiar muito para fazer revelações sobre si mesmo [nada semelhante ao exibicionismo dos perversos, contando vantagens ou fetiches, ad nauseam]; afinal, mal ou bem, ele encontrou no anonimato um polo de “relativa segurança” à ridicularização pública e incredulidade aos conteúdos [ou “confissões”] que gostaria de comunicar. Ele perdeu a confiança no Olho Alheio.

Temos, assim, de desimantá-lo, deste Outro Olho, Solitário e Demoníaco, que passa a vigiá-lo como uma segunda natureza [parasita e interna] que o impede de ser “ele mesmo”, de ser “espontâneo”, sentindo-se vivo e real.









Marcelo Novaes







Bibliografia:


Sobre a leitura do ressentimento na clave oposta àquela que exponho aqui, vide: Kehl, Maria Rita. (2008). Ressentimento (Coleção Clínica Psicanalítica). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Os outros livros e textos já são elencados na sugestão bibliográfica de outros capítulos deste ensaio.