Muitas vezes é difícil para uma criança expressar seus pesadelos para os pais. Há inúmeras razões para isso. Ela pode ter medo dos pais, tanto quanto de seu pesadelo. Ela pode sonhar com um tema que nenhum dos pais esteja disposto a abordar. Por exemplo: que o pai torturava a criança num porão. Outro: que o pastor da igreja, transfigurado num demônio barbudo, batizava pessoas no sangue de cabeças decepadas por ele mesmo, no convés de um navio. Uma menina de oito anos teve esse sonho. Sua mãe crente não tinha condições de ouvi-lo, e ela sabia disso. Sonhos que "difamam" os pais não costumam ser bem aceitos, nem ouvidos com naturalidade. Por exemplo, o sonho em que o pai incendeia a casa, em que encarcera mãe e filhos, em que se transforma num monstro, etc. Sonho em que a mãe vira bruxa, em que fica louca e expulsa os outros de casa, em que usa uma faca de cozinha para ameaçar os filhos, em que aparece como uma "impostora com olhos de outra cor, vermelhos, cheios de sangue", por exemplo. Imagens religiosas sombrias, também não costumam ser facilmente assimiláveis pelos pais, ainda mais se "aviltam" suas crenças.
Uma criança sonhou que "fazia a água pegar fogo, estendendo a mão sobre a água e orando". Para ela, isso era um indicativo de ser "filha do demônio”. Talvez sua mãe achasse algo parecido, ou temesse ouvir a "revelação" da imagem onírica. Outra “sonhou que acordava e que percorria o corredor de sua casa trepidando dentro de si mesma" [ela disse, "tremendo dentro de mim mesma"], e “que ao tentar acordar os pais, um trovão saiu no lugar de sua voz, e que eles se abraçaram com medo dela”. [Isso é muitíssimo diferente de “temer a cena primária” conforme proposta por Freud, a cena da relação sexual dos pais; ou de “interrompê-la”; ou “temer vê-la e interrompê-la”...; ou mesmo "temer a cena por desejar e invejar estar ali, por se ver excluído da mesma"]. E que, “ao se dirigir ao espelho do banheiro, seu rosto estava se transfigurando, aquele rosto-voz que tinha causado medo aos pais”. É como se ela tivesse se transformado num "deus dos raios". Pois bem, quantos pais saberiam administrar um sonho dessa natureza, narrado por uma criança de sete anos? E imaginem como tais vivências podem ser aflitivas para essa gente miúda...
Quando uma criança se dirige aos pais, no meio da noite, dizendo algo assim: "Tem alguém no meu quarto, uma velha na beira da minha cama", e ouve uma resposta do tipo: "Não é nada, é um pesadelo, vá dormir..." Bem..., se os pais agem assim, sem que ninguém se disponha a entrar no quarto e dialogar /interagir com o medo da criança, perguntando, por exemplo, "Ela ainda continua aqui?"; "O que a velha está fazendo agora?"; "O que ela quer?"; "Ela gostou da minha entrada?"; "Ela ficou com raiva ou com medo de mim?"; "Vamos ver o que a gente pode fazer para ela ir embora"; etc., etc. Bem, se ninguém se dispõe a entrar no "território do perigo" para a criança, ela, inevitavelmente, vai chegar a uma de duas conclusões: 1) Meus pais não me levam a sério; qualquer coisa que me assuste é "nada para eles"; 2) Meus pais "têm medo do meu medo", ou daquilo que me assusta. Logo, são incapazes de cuidar de mim. [Às vezes o corolário é: "terei de cuidar deles;" ou "terei de poupá-los, cuidando de mim mesma"]. Ambas as alternativas criam um isolamento da criança em relação aos pais, e um encolhimento em relação ao mundo social. Criam um "eu secreto" que não pode ser comunicado aos outros, uma "identidade encapsulada", encolhida. Tudo isso acaba por formatar uma noção clara e inequívoca, para a criança, de que existem coisas das quais não se pode falar, que são indizíveis, impronunciáveis, não-compartilháveis. E as brumas e a incomunicabilidade vão se ampliando em torno dela...
Grandes escritores costumam apresentar questões humanas decisivas, nevrálgicas, em seus romances. Há uma passagem na obra de Henry James, escritor americano, em seu romance "A Volta do Parafuso",onde uma criança acorda, vê um fantasma no quarto e, aterrorizada, acorda a governanta para que a proteja; mas a governanta fica tão apavorada quanto ela, e não pode confortá-la. Uma sensação de impotência se apossa de ambas, e isso cria "solidão" para a criança. Criança e governanta podem se sentir, ambas, sós diante do perigo. No caso, pelo menos, se a governanta está no quarto da criança, essa presença minimiza o isolamento: o terror é compartilhado. Quando ela é deixada só, e o tema não é trabalhado com os pais ou adultos responsáveis, sua solidão é absoluta, e sem testemunhas [!]. Porque quem ouve e não confere, se recusa a olhar, ou a ouvir tudo. E esse "desvio calculado do olhar", pesa à criança, empurra-a para a solidão. A somatória de situações como essa descrita, mostrará à criança o quanto ela pode ou não compartilhar: medo, raiva, mágoa, dor, abandono. E eu digo "comunicar", com palavras, e não atirando objetos ao chão, esperneando, chorando sozinha, perdendo o apetite, adquirindo alergias. Comunicar. A quantidade de indizíveis e incomunicáveis que a criança constata na vida-de-relação, sobretudo em casa, em família, vai acabar por constituir a medida de seu isolamento, de sua vida secreta, de seus monólogos e diálogos interiores, que ninguém ouve ou vê. Só os personagens de seus temores e de seus pesadelos. Só Deus [às vezes temido, visto como um "Deus Mau"], ou o demônio. A quantidade de indizíveis determinará a medida do encapsulamento do "eu" dessa criança, do encapsulamento do seu self.
Uma falsa solução para isso seria, por exemplo, querer se desviar do foco daquilo que preocupa a criança, procurando substituí-lo por algo mais agradável, do tipo: "Olha que dia bonito lá fora! Esqueça isso, vamos jogar bola!". Esse tipo de esquiva é acuradamente percebida pela criança como uma negação: "não podemos falar disso".É o mesmo que dizer: "não gosto do seu medo, ou da sua raiva, ou da sua mágoa", ou "não sei lidar com tudo isso". Portanto, "quero que você fique alegre, que não tenha medo ou raiva de ninguém, nem de seu irmão ou de mim, que daí seremos amigos!" Eis a mensagem subliminar. Se uma criança experimenta medo, é de medo que se deve falar, e não de "dia ensolarado". O mesmo em relação a brigas na escola, rivais, "inimigos", "ódio do irmão", o que for. Só assim, ela enxergará a família em seu papel de sustentáculo às sua perguntas e descobertas. Do contrário, fará suas perguntas [e chegará às suas conclusões] em segredo, com um fundo sentimento de "anonimato".
Dado curioso: nunca vi uma mãe perguntar a um menino coisas que o "faro masculino" capta melhor. Por exemplo, as simples perguntas: "Quantos inimigos você tem na escola, meu filho?" "Como eles se tornaram seus inimigos?" Já vi muitas crianças contarem nos dedos o número de seus inimigos [e não cabiam nas duas mãos!], comentarem sobre perseguições e chantagens, e até revelarem "gangues infantis" nas escolas. São dados dessa natureza que podem "passar batido" à interrogação de mãe ou pai, e determinarem, por exemplo, o medo/repulsa que uma criança tem do ambiente escolar; porque participa de tantas brigas, porque bate ou apanha tanto... Não ocorre a muitos pais que crianças tenham "inimigos". E muitas vezes os têm: outras crianças chantagistas, perseguidores contumazes, medo do mais velho da turma, que é um repetente, quatro anos mais velho do que ela, etc., etc. Há muitas crianças "tímidas" que se descobre, facilmente, que estão sendo "intimidadas". E saber disso faz uma diferença enorme. Muitas vezes, o substrato para uma série de medos e pesadelos, são ambientes intimidadores,"imprevisíveis" ou obscuros/confusos.
Certa vez, em posto de saúde da periferia, uma menina de sete anos saiu da sessão falando para a mãe algo que muito a impressionou: "Mãe, minha vida vai mudar agora". Isso ocorreu porque toquei em medos nevrálgicos da criança, sem delongas. Quando o pai compareceu, explicitei pra ele a questão com a criança. Ele a ouvia pouco e ouvia mal. Com isso, o pai aprendeu a ir abrindo mão do jogo de esquivas e a prestar mais atenção nos sentimentos reais de sua filha, ao invés de se distrair deles, pretendendo distraí-la.
Marcelo Novaes